domingo, 23 de dezembro de 2012

Sou humana

Sim, sou humana. Carrego em mim um esqueleto, um fardo pesado. O meu sangue transporta quem eu sou, no que me tornei. A minha pele é a máscara, que protege o meu ser. Sou uma humana, como os outros. Eu erro. Porque não haveria de errar? Sempre o fiz e sempre o hei-de fazer. Tenho vergonha de coisas que fiz. De muitas coisas que fiz. É uma verdade. Sinto-me, muitas vezes, envergonhada por ter tomado certas decisões. Por não ter parado para pensar. Por me atirar de cabeça. Sim, sinto-me envergonhada, tanto que me apetece enrolar-me em mim mesma numa bola humana. Como se isso me escondesse da humilhação. Sou uma pessoa, arrependo-me e por mais que tente, não me consigo perdoar. Perdoo todos, menos a mim. Guardo a vergonha, ponho-a num canto, e ela fica ali, até decidir assombrar-me de novo. Mais ou menos naquele momento em que finalmente estou bem de novo. Não estou sempre num dia sim. Sou adolescente, como posso estar sempre bem? Não estou. Por norma, não gosto do facto de ser assim. Nas excepções, odeio. Mudava, sem hesitar, vários traços da minha personalidade. Sou ingénua e ainda penso que o Homem é algo pela qual vale a pena lutar. Não é. Aprendi, da pior forma, que lutar, só por sonhos. E mesmo assim, é difícil. Cresci. Oh sim, eu cresci. Por vezes, gosto de quem era. São raras, mas até existem. No entanto, só me consigo lembrar das minhas falhas, dos meus erros. Do que não devia ter feito, mas fiz. Do que não devia ter dito, mais disse. Sou humana. E que humana. A minha cabeça é uma confusão, os pensamentos correm de um lado para o outro, embatem contra as paredes do cérebro, tanto que tenho de parar e gritar 'não'. Anda tudo por aqui, sem pedir permissão, cada um a querer levar a sua avante. Cada um a querer a minha atenção. Fazem-me parar o que quer que seja que estou a fazer, para os mandar estar quietos. Perco todos os dias, um bom tempo, a pedir que parem. Mas eles são teimosos, não querem parar. Continuam, como se nada fosse, como se a minha cabeça fosse um ring de boxe, na qual se luta por um prémio. Confesso que, por vezes, parece mesmo um ring de boxe. Nem eu encontro o que preciso, no meio de todas estas vozes, no meio de todos estes sentimentos ou emoções. Simplesmente, há dias que não consigo. Não sei como os levo até ao fim. Não sei. Mas levo-os. E a minha mente, continua aqui. Continua a adicionar características minhas ao meu sangue, a aumentar o fardo do meu esqueleto e a construir a mascara que é a minha pele. Sempre em frente, rumo a não sei onde.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Tenho 15 anos e (...)

É hoje. Eu vou vê-lo. Um dia recebi uma chamada, de um número desconhecido, no meu telemóvel. a voz era mais grossa, mas era ele. Eu sabia que era ele. Pela maneira como o meu coração saltou, como a minha pele se arrepiou. Pela doçura quando ele pronunciou o meu nome. Era ele. E queria ver-me. Portanto, aqui estou eu. Sentada num jardim, à espera dele. Apercebo-me que já não o vejo à 3 anos. 3 anos. Quanto é que ele terá mudado? Muito, pouco? Às vezes é difícil ter isso em mente. Que ele já não é o mesmo. A foto dele, na minha carteira, não muda. Tal como aquela que está no meu guarda-fatos, ou a da mesinha de cabeceira. Continua o mesmo. Quanto é que uma pessoa pode mudar em 3 anos? Eu mudei. Continuo com a mesma cor do cabelo, embora este esteja mais comprido. Os meus olhos são os mesmo. Talvez um pouco mais escuros. O meu corpo, esse mudou todo. Será que o do Jaime também mudou? É provável, muito provável. 
Olho em volta, pelo jardim. Tanta gente, pais, filhos, avós, casais.. Está um dia bonito. O tipo de dia que nos inspira a reviver o passado. Demorei tanto tempo a fechá-lo numa caixa e agora ia abri-lo, de novo. 
O meu coração dá um salto. É ele. É um homem. Está mais alto, muito mais. Consigo ver-lhe os músculos dos braços. Mesmo assim, consigo reconhece-lo. Pelos seus olhos, que serão sempre o mesmo. O seu sorriso. Embora seja a cara de um homem, os traços do menino que conheci em tempos., estão lá. É ele. 
- Jaime.. 
Levanto-me. Quero ir ter com ele e recuperar o tempo perdido. Abraçá-lo e dizer-lhe para nunca mais ir. Já sinto as lágrimas nos olhos. E aí...
- JAIME.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O mar é fiel 17*

A música está baixa. Mais alta, seria impossível de suportar, a minha cabeça não dá para mais. No entanto, parece ter um volume excessivo, naquele quarto vazio. Naquela casa vazia. O som ressoa, pelas paredes, pelo ar, por mim. Faz-me desabar, mais uma vez. Não consigo mais com isto. Sou tão fraca, tão estúpida. 
- Lua?
Oiço a voz do Frederico, lá fora. Que saudades. Levanto-me, tentando recompor-me - algo inútil, sei disso. Desço as escadas, mas sinto-me uma tontura, o que me obriga a agarrar o corrimão com todas as forças, para não cair. Abro a porta e a luz encandeia-me. Ponho uma mão à frente dos olhos e desvio o olhar. Aquilo queima. 
- Hey.. - sinto a mão dele na minha cintura, enquanto a outra fecha a porta - como estás?
Agora, sem tanta luz, posso desproteger os olhos. Mesmo assim, não o encaro. Não consigo. Por mais que me lembre que é o Frederico, a pessoa em quem mais me confio. O Frederico, a pessoa que mais me apoia. Não consigo. A minha figura é dececionante. Para qualquer pessoa. Até para mim. Não me vejo ao espelho à algum tempo, mas devo ter os olhos inchados, o cabelo despenteado e a minha cor não deve ser muito boa. 
- Lua, olha para mim.
As lágrimas estão demasiado próximas, demasiado.
- Desculpa, Frederico. Desculpa. 
Não te acanhes, ele é o teu namorado, podes chorar com ele. Ele já viu a minha fraqueza uma vez, não tem de a ver uma segunda. Deixa-te disso, Lua, ele não te vai julgar. Mas vai pensar que sou fraca.
- Desculpa de quê? Lua, tu não tens culpa. De nada. Porquê isso.
Ele abraça-me. Encosta-me a si, tão perto, consigo sentir-lhe a respiração. Isso acalma-me. Pouco, mas acalma. Tenho que inspirar fundo várias vezes, antes de conseguir formar uma frase, propriamente dita. A minha garganta não deixa passar nenhuma palavra compreensível. 
- Eu afastei-me de ti, deixei que a dor, a minha dor - tem calma Lua, está tudo bem - criasse uma distância entre nós.
Tenho que parar. Por um momento. As lágrimas já correm pelas faces, por mais que eu as tente parar, não consigo. 
Dediquei-me ao meu sofrimento e deixei-te de parte - a minha voz está tão fraca - Durante muito tempo, demasiado tempo. 
Calma.
- Mas eu entendo, não tem mal. 
- Tem sim, eu sei que tem. Eu não devia ter-me afastado, não devia.
Abraço-o com ainda mais força. Como se isso remendasse a distância que foi crescendo entre nós nas últimas semanas.
- Lua, vá lá. Eu já disse que não me importo. Precisaste de tempo para ti, qual é o mal disso?
- Ter-te deixado de parte.
A frase paira no ar. 
Fui estúpida, magoei-o, que parva. Não magoaste nada, o Frederico é mais compreensível do que isso. Isso não quer dizer que não sinta, e que a distância não o tenha magoado. Mas ele entende. Ele não merecia.
Ele afasta-me de si. Magoei-o mesmo. Eu sei que sim. Eu sei. Obriga-me a olhar para si, mas eu mal o consigo ver, a lágrimas tornam tudo desfocado. Desculpa. Por favor, desculpa. 
- Tu não tens culpa. Afastaste, sim, mas e depois? Se estivesses no meu lugar, se fosse eu a precisar de espaço, se fosse eu a refugiar-me em casa, tu entendias-me?
- Claro que sim! Eu entendia, e ajudava-te, óbvio, que sim, tu sabes que sim. 
- Então, é o mesmo comigo. Eu entendo, aceito, e estou aqui para te ajudar. 
- Tu não merecias que eu me afastasse, eu sei que não - as lágrimas passam a soluços desesperantes, já não vale a pena tentar esconder.
- É verdade. Não merecia. Mas por vezes é assim, levamos com o que não merecemos, pelo bem de quem ama-mos. Eu sabia Lua, eu sei, que dar-te espaço foi o melhor. Eu sei que sim, tu precisavas de pensar, organizar a cabeça. E precisavas de o fazer sozinha.
- Não ajudou em nada, a minha cabeça continua uma confusão.
Ele sorri. Não sei como consegue, com aquele ambiente pesado, o desespero e a dor, mas ele fá-lo. E isso, quase que provoca o meu sorriso. 
- A tua cabeça será sempre uma confusão, Lua.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Frágil Ser

Ela era um pequeno ser. Era frágil. Tinha um coração frio, congelado pelas memórias que lhe atormentavam o passado, ferido pela tortura com que havia vivido, partido com a queda do abismo a que a vida lhe tinha conduzido. Ela era muito nova, muito mesmo. Tinha, no entanto, uma vida cheia de horrores, cheia de dores, cheia de sofrimentos. O seu corpo, o seu próprio corpo, era uma amostra disso, era o que mais fazia entender o porquê de chamar ao caminho daquela pequena, o caminho do sofrimento. Os seus braços? Eram repletos de marcas, assim como as suas pernas, fruto de muitas batalhas vividas. Os seus pequenos dedos eram tortos, deformados, de tanto terem escalado montanhas e trepado árvores. Tinha uma cicatriz na sua mão direita, a que muitos chamavam a ‘Marca do Diabo’. Era, a pior, aquela que jamais sararia, assim como as do seu pequeno coração. A sua cara, porém, estava intacta. Tudo no sitio, mas os seus olhos, esses eram escuros, mais escuros que o manto negro que abalava a sua alma, mais negros que o céu que caía sobre o planeta, quando o sol se punha, mais negros que os dias de trovoada. A sua voz? Era fria, desprovida de calor humano, desprovida de amor ou sequer felicidade, desprovida daquele carinho que era tão bem conhecido entre as outras crianças, era apenas e só um som, um barulho que ressoava pelas paredes do seu mundo, pelas paredes do seu escudo protetor. Como poderia uma criança ser assim? Transformar-se em algo tão sombrio? Talvez quem tivesse visto os pais a morrer à sua frente. Alguém que sofreu nas mãos a que muitos chamariam Diabo. Talvez alguém que vivera no meio da floresta apenas com cinco anos, alguém que aprendera a viver com e apenas com animais e plantas. Triste não é? Uma pobre criança, quase um bebé, viver assim, lutar desta forma. Sim, já tinham passado anos desde essas alturas, 5 ou talvez 6, não havia certezas, mas a pequena sonhava com isso, como se tivesse sido ontem, a pequena vivia aquilo no seu subconsciente, dia após dia, semana após semana, ano após ano. A pequena jamais poderia ter uma vida normal, era demasiada dor, demasiadas lembranças. Mas ela já se habituara, a sua vida era assim, perdera os pais e os irmãos mas tinha sido poupada, apenas vira a morte dos pais, os irmãos haviam morrido em batalha da sobrevivência da pequena. Quanta dor as suas almas ainda deveriam sentir, lá em cima, no lugar onde as almas se encontram, onde as almas assistem ao mundo que se vai formando cá em baixo, no chão, no mundo. Desde o acontecimento, ela tinha começado uma nova vida, tinham-na descoberto num dia soalheiro, levaram-na para uma instituição, deram-lhe um lar, comida e roupa lavada. Deram-lhe a oportunidade da vida. O seu psicólogo está para além das capacidades da pequena, jamais conseguiria entender o que se passava na cabeça daquele frágil ser, ele tentava e ela não o culpava, ele sempre a tentara entender, era dos poucos que lhe ainda tentavam dar-lhe a definição da palavra amor. Mas ela não conseguia aprender. As pessoas que lhe deviam ter ensinado essas definições iam lá longe, tinha chegado à meta do seu caminho, já não estavam ao lado dela. Ela queria ver a mãe ao chegar da escola. Ela queria discutir com os irmãos e ‘lutar’ com eles. Ela queria sentir medo, chamar pelo pai, abraçá-lo e sentir-se protegida. Ela queria sair e ir explorar o mundo com a sua família, mas isso não lhe era possível. Ela levava-os para todo o lado, não ao seu lado, mas sim num lugar mas privativo, num lugar mais condicionado – no seu coração. Depois de tudo, ela não sentia. Ela não sentia alegria. Não sentia medo. Não sentia amor. Não sentia carinho. Apenas sentia solidão e dor, apenas e só isso, nada mais.


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Adeus

Tu foste embora, e nem um adeus disseste. Nada. Limitaste-te a ir. Sem qualquer despedida, sem qualquer justificação, tu só foste. Eu, eu, estúpida, eu, iludida, pensei que fosses voltar. E esperei por ti. Esperei, o tempo suficiente até entender que não ias voltar. O tempo suficiente para entender que já não havia espaço para mim na tua vida. Se calhar nem nunca houve, se calhar fui apenas um passatempo para ti. Mas eu, quer aches ingénuo, quer não, ainda espero por aquele adeus. Aquele que nunca me disseste, mas acredita, eu espero por ele. Espero, porque sem ele, é como se não existisse um fim, concreto. É como se eu ainda esperasse por ti, mesmo sabendo que nunca mais voltarás, mas mesmo assim, uma pequena parte de mim, espera. Espera que um dia tenhas tantas saudades minhas como eu tenho tuas. Provavelmente nesse dia, a dor será bem maior do que a vontade de te perdoar. É altamente provável. Nesse dia, porém, sei que posso avançar sem nada a prender-me atrás. Sem aquela pergunta constante. 'Ainda te lembras de mim, de nós?'. Egoísta, não é? Querer que tu 'cais em ti' só para as minhas perguntas serem respondidas? É verdade, talvez seja. No entanto, de mim, tu mereces isso. O meu lado frio, o meu lado egoísta, o meu lado que não quer saber de ti. Tu fizeste o mesmo comigo. E nem sei se sequer notaste no buraco que deixaste em mim. O quão difícil foi habituar-me a uma realidade sem ti. Eu acho que tu não tens noção alguma disso. Para ti, foi fácil. Vir e ir. É tão simples, não é? Eu gostava de saber como fazer isso. Como deixar de sentir de um dia para o outro, como ir embora sem sentir culpa de 'abandonar' alguém, como é isso, explica-me, eu quero saber. Pode ser que assim, eu entenda como foste capaz de o fazer. Mas talvez eu nunca consiga entender. É, eu nunca vou conseguir entender o que fizeste e porque fizeste. Desculpa se isso faz de mim uma pessoa pior. Não conseguir deixar de sentir. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Tu corres

E tu corres. Corres como porque te ensinaram assim. Corres porque o sangue nas tuas veias implora por isso, corres porque as tuas pernas não conseguem parar. Por isso, tu corres. Com uma intensidade surpreendente, com uma velocidade espantosa. Mas a verdade, é que tu corres. Como se nada te fosse parar. Como se nada te fosse travar neste caminho. Progrides, avanças sempre a correr, sempre. Ultrapassas os obstáculos, é fácil para ti. Vais lançado/a. É simples, saltar quando é uma árvore caída, desviares-te quando é uma rocha no meio do chão, manter o equilíbrio nas poças de lama. É tão simples, para ti. Continuas a correr. Porque nada te impede disso. Se alguém te faz uma rasteira, limitaste a afastar-te e a seguir caminho. Sempre rápido, sempre veloz.
Mas eis, que paras. Olhas para a frente, mas já não te podes mover. Tens um abismo, à tua frente, tão grande, tão profundo, nem lhe vês o fim. Olhas para trás, mas está tudo escuro. Tão escuro, não consegues vislumbrar nada através de toda aquela negrura. Do teu lado esquerdo, do teu lado direito, é tudo igual. Escuro, escuro, escuro. Sem fim que consigas notar. Vamos lá, pensa. Que podes fazer, neste ponto, nesta situação? Arriscar no precipício? Talvez te tenhas enganado, pode nem ser assim tão profundo, tão grande. Pegas numa pedra, e atira-la para aquele imenso vazio. Está tão silêncio, que consegues ouvia-la a cortar o ar, tão claramente. Enquanto cai, porém, o seu som vai-se desvanecendo. E aos poucos, aquilo que era claro, torna-se indecifrável. Prestas atenção, mas ela nunca mais cai, mais uma vez, aquele buraco, aquele abismo, parece não ter fim.
Já te sentes com medo, não é? Então, pensei que tivesses coragem, pessoa veloz. Pegas noutra e repetes o mesmo processo. Uma e outra e outra. Mas de todas as vezes, é tudo igual: o som da pedra por entre o ar e depois ele a desvanecer-se, até deixar de existir. O pânico está-se a formar, não é? Olhas em volta, procurando uma saída, mas não há saída. Ou o escuro, ou o abismo. Lá ao fundo, não sabes muito bem onde, ouves o primeiro som, naquele imenso espaço deserto. Mas não é propriamente um som alegre. É daqueles de criar arrepios pela espinha abaixo, aqueles que tornam o coração pequenino, aqueles que nos fazem pensar em todo o tipo de cenários que não julgávamos algum dia pensar.
O terror, já é grande. Vamos lá, pensa, o tempo é escasso, tens de escolher um caminho. Pensas no abismo. Talvez, se uma árvore caísse e servisse de ponte, conseguisses atravessa-lo. Seria uma hipótese, e bem viável. No outro lado, não há nevoeiro. Há um espaço aberto, que parece que chama por ti, que diz o teu nome. Ali, porém, não há árvores caídas, nem em vias de cair. E tu, até podes ser forte, mas a força não te chega para mandares uma árvore abaixo. A lua move-se, lá alto no céu. O tempo está a passar, rápido, precisas de agir, tomar uma decisão.
Optas, então, por voltar por onde vieste. Apesar de não se ver nada, apesar de não conseguires entender onde podes ou não por os pés, optas por seguir por ali. Vamos, então. Está a ficar frio, e tu estás a senti-lo. Consigo ver isso. Apertas os braços em volta ao corpo, a tua roupa já não é suficiente para manter a temperatura do teu corpo. Não esperavas uma corrida tão demorada, pois não? Mas vá, não está a ir mal. Mesmo com nevoeiro, ainda não caíste. Penso que seja bom, o teu sentido de orientação não é assim tão mau quanto aparentavas.
Porém, quanto mais te embrenhas nesta floresta, ou bosque, ou caminho, o nevoeiro torna-se mais espesso. Tão espesso que mal consegues ver o fumo criado pela tua respiração, tão espesso que nem os teus pés consegues ver. Começas a chorar. Queres voltar para casa, não é? Estar perdido, simplesmente não é algo para ti. Estás gelado, cansado, com fome e sede. Já nem sabes por onde vieste. Cais no chão, controlado pelo medo, pelo choro. Não há saída, e tu sabe-lo.
Ao ergueres o olhar, vez um criatura. Ela não é linda. Não é daquelas que nos descrevem nos contos, aquelas que nos salvam ou ajudam. É uma criatura que nos arrepia e que torna o nosso coração, ainda mais pequenino.

domingo, 11 de novembro de 2012

O mar é fiel 16*

Porquê? Porque é que me sinto assim? Não faz sentido. Ela não faz parte da minha vida, ela não fazia parte da minha vida. Então porque me culpo? Porque é que me sinto assim? Ela há muito que já não era uma mãe, há muito que passara a ser mais um ser vivo neste mundo, há muito que passara a ser alguém que tinha de tolerar de meses a meses, como se fosse uma estranha que ia a casa só porque ficava bem. Eu mal me lembro da última vez que senti algo para além de distância, frieza, mágoa entre nós. A última vez que houve cumplicidade, perdeu-se com a nossa relação. Não havia nada entre nós. Nada para além de um grande espaço vazio. Nada para além de meras memórias. 
Mas se assim o é, porque é que me dói tanto? Porque é que a quero de volta. Era tua mãe. Não, não era. Ela deixou-me! Ela esteve sempre lá, tu é que não viste. Ela deixou de querer saber de mim. Ela sempre se preocupou. NÃO. Se ela se preocupa-se, ela teria mo dito, ela teria falado comigo quando eu precisei. Ela não o fez. Ela observou-te à distância, ela esteve mais perto do que aquilo que julgas. 
- NÃO! NÃÃÃO! ELA NÃO ERA NADA!
E o grito ecoou. Sobre a areia vazia, através do ar, gelado. Como eu. 
Estava tudo tão bem. Eu tenho 17 anos, estou a terminar o décimo segundo, eu vou para a faculdade, eu tenho a minha vida construída, encaminhada, porquê? Porquê isto assim, desta forma? 
- NÃO É JUSTO, NÃO É.
O choro aumenta. A garganta incha, e as lágrimas rolam pela cara abaixo. Ela não era nada.
- Lua?
Não, não o quero ver. Eu quero estar sozinha, preciso de estar sozinha, preciso de organizar isto tudo, fazer as coisas tomarem um sentido lógico. Eu não o consigo ver, não consigo. Levanto-me e começo a andar, mas os pés tropeçam um no outro e caio. Choro ainda mais, por ser tão parva, tão ridícula  tão fraca ao ponto de nem andar conseguir.
- Lua, por favor, fala comigo.
- Sai daqui, vai-te embora, por favor.
- Não... - sinto as suas mãos em mim, a ajudar-me a levantar, a pôr-me outra vez de pé - fala comigo, que se passa?
- Frederico, por favor...
Não consigo aguentar. Ela não era nada, agora é tudo? Eu não me importava com o que lhe acontecia, agora já importo? Ela não fazia parte da minha vida, de mim, agora já faz? 
- Lua...
Agarro-me a ele e começo a soluçar, desesperada. Agarro-me com tanta força, que me magoa as mãos. Agarro-o como se isso fosse a única coisa que me amparasse, como se nada mais me mantivesse de pé. Porque nada mais o faz. 
Ele abraça-me, diz-me palavras de consolo. Tenta acalmar-me. Mas não resulta. As lágrimas aumentam, o coração encolhe, tão pequeno, tenta lutar contra esta dor, mas não vale a pena. Ela é tão forte, mais forte do que ele, do que eu. Ela era tua mãe. Uma desconhecida. Não.
- Lua – obriga-me a olhar para ele, mas eu mal consigo vê-lo – o que se passou? Tu não és assim, não choras desta forma, que aconteceu?
Respiro fundo várias vezes, tentando parecer mais forte do que aquilo que me sinto, do que aquilo que estou, mas mesmo assim, a minha voz soa fraca:
- Ela foi-se embora.
- Ela? Ela quem? A tua mãe?
Aceno com a cabeça, em sinal afirmativo.
- Mas ela vai várias vezes embora, Lua, tu própria o disseste, ela mal passa tempo em casa.
- Mas desta vez, é de vez…
Ele parece não entender. Não percebe o que digo. O porquê de estar assim por uma coisa que, aos seus olhos, é tão banal.
- Mudou de casa?
- Não, Frederico, não foi nada disso.
Tenho a respiração ofegante, o coração a bater tão rápido, como se tivesse saído de uma corrida. A água dos meus olhos, essa ainda cai, sem amparo possível.
Finalmente, faz-se-lhe um clique na cabeça e entende. Entende o que eu disse, entende porque choro tanto, entende porque estou assim.
- Oh Lua, lamento imenso.
E abraça-me. A única coisa que impede que eu caía ainda mais.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Chorar

Queres chorar? É isso não é? Então chora. Consigo ver isso. Estás lá quase, já não aguentas muito mais tempo. Não há nada de errado com isso. Nada de mal. Chorar faz bem. Alivia a alma. Eu sei que já deves ter ouvido isto muitas vezes, no passado. Tudo o que te estou a dizer, já to é conhecido. Mesmo assim, não tenhas medo de chorar. Chorar é normal. Se não o fosse, não o poderíamos fazer. Ajuda-te a aclarar a mente, sabes disso. Não te enganes, não mintas a ti mesmo/a. Não digas que não precisas, tu sabes que precisas. Sentes isso? Essa água que se está a apoderar, aos poucos e poucos, dos teus olhos? São as lágrimas a querem sair. Estão desesperadas, prendeste-as aí dentro por demasiado tempo. Aprisionaste-as e nem notaste que necessitavas de as deixar escorrer. Mas elas, são demasiado selvagens para aceitarem ficarem presas assim, de modo incompreendido. Elas lutam contra ti e tu lutas contra elas. Porquê? Deixá-las sair, não é atitude fraca. Tens sentimentos, emoções, és humano/a. Isso é mau? Eu sei, dói. Dói deixá-las vir cá para fora, deixá-las sair. Não queres dar parte fraca, queres mostrar-te forte. Não aos outros, a ti. Queres provar a ti mesma que consegues passar por cima disto, com a face seca. Eu sei que sim. Mas acredita em mim, depois disso, depois de te renderes a essa dor por momentos, depois de te deixares ir abaixo, a dor alivia. As lágrimas chamam-na cá acima e depois expulsam-na. Mandam-na embora. Tens medo de quê? Ninguém te pode ver. O quarto é só teu. Não tenhas medo, principalmente de ti. Não tenhas. Não te aches fraco/a. Não és. Sabes bem, não podes ser sempre forte. Aliás, chorar dá-te força. Todos nós chegamos ao ponto de já não conseguirmos aguentar mais. És forte, não te culpes. Não há culpa em chorar. Não é um erro. É algo que te faz falta. Algo que precisas para depois conseguires seguir em frente. Algo que todos nós precisamos. Portanto, chora. Deita tudo 'cá para fora'. Vês? É fácil. Aliás, atrevo-me a dizer que é das coisas mais fáceis de se fazer, chorar. Agora que começas, torna-se difícil parar. Tudo vem à tona, não é? Não te preocupes, liberta tudo. Tudo o que acumulaste, aí dentro, toda essa pressão, essa dor, esse medo, essa saudade, essa mágoa. Liberta-te disso. Gota e gota, tudo vai-se aclarando na tua mente. Este, és tu. Sem qualquer máscara. Sem qualquer muro protetor, sem qualquer barreira. És tu, simplesmente tu. Com tudo o que tentaste esconder. Com tudo o que ocultaste, durante este tempo todo. O sofrimento disfarçado em modo sorriso. Esse sorriso, o teu falso companheiro.

domingo, 28 de outubro de 2012

Dias de Vento

Dias de vento, fazem-me sentir saudade. Trazem as recordações mais profundas, despertam os sentimentos que eu julgava já ter esquecido. Fazem-me visualizar cenas, uma e outra e outra vez, na minha cabeça. E essas lembranças, trazem ao de cima o que eu era. E fazem-me desejar voltar atrás no tempo. Voltar atrás, nem que seja por um dia, só um. Lembro-me de memórias, que nem sabia que me lembrava. Mas elas estão lá, claras como aquele dia sem nuvens. E o meu desejo arde mais intenso, de voltar e parar, ali, naquele preciso momento, ficar ali. Porque ali tudo era fácil.
Dias de vento, fazem-me perguntar ‘e se’. E se as coisas tivessem sido o oposto. Se eu tivesse conhecido outro pessoa, em vez daquela? Se eu não tivesse mudado de casa? Se eu naquele dia, não tivesse tido coragem de falar àquela menina tímida, à porta da sala de aula? Se eu não tivesse, naquele dia, ter tido a coragem de lhe perguntar se estava tudo bem com ele? Teria sido diferente, teria feito uma grande mudança na minha vida. Ou talvez não. Talvez as coisas continuassem como são. Talvez por qualquer outro motivo acabasse por conhecer quem conheci. Feito o que fiz. O condicional é muito improvável, mas ocupa o meu espirito quase todo o dia.
Dias de vento, fazem-me pedir que estejas aqui. Apesar de eu saber que não estarás, mas não importa. Não importa quês digam que sou parva, que te devia esquecer, que tu me magoaste e que ser ingénua ao ponto de te querer de volta é estúpido. Mas eles não entendem. Eu quero-te como amigo. Porque apesar de tudo, tu sabias sê-lo. Tu sabias dar-me apoio. O que dizer, quando dizer. Não quero mais que isso. Pedir uma amizade, é pedir muito? Talvez até seja. Talvez eu esteja a pedir um mundo a uma pequena estrela. Mas acredita, tu ainda brilhas. E isto pode ser a minha parte fraca a falar. É provável que seja. Mas não faz mal. Todos nós a temos, não é verdade?
Dias de vento, fazem-me bem. É como se depois de tudo isto, lá no fim, levassem tudo com eles, como se ao se irem embora, se misturassem com a dor e a levasse. Como se pegassem na mágoa e arrastem-se com eles. E eu gosto disso. O que me faz gostar destes dias. Em que o cabelo bate forte contra a cara. Até nos dignarmos a atá-lo. Mas a bem dizer, eu gosto do cabelo nos meus olhos, contra a minha boca, a roçar no meu nariz. Gosto de sentir o seu cheiro. Porque isso? Traz-me a casa. Mostra-me quem sou. O seu pequeno perfume, mostra-me onde pertenço. Mostra-me que ainda algo é real. Por isso, não me importo que o cabelo esvoace livremente.
Dias de vento. São dias. E que dias. Dias que me confundem. Que baralham tudo cá dentro. Mas no crepúsculo, já decidiram o que levar e o que deixar. São dias, daqueles que eu gosto.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Tenho 14 anos (...)

O décimo ano é algo que me dá cabo da cabeça. Nem sei se escolhi o curso acertado. Escolhi-o com base num sonho. Não é propriamente a melhor maneira de escolher um curso. Mas o meu coração implorava por ele, implorava que eu seguisse o nosso curso. Será que ele o seguiu também? Ele sempre adorou a natureza, sempre disse que queria ser médico, daqueles que viajam pelo mundo a curar as pessoas. Era o seu maior a sonho. A seguir, claro, de ficar para sempre contigo, acrescentava sempre com um sorriso. O que me faz sorrir. O que faz o meu coração chorar. Ultimamente, andava pior. Muito pior. Mudei de escola, com a ida para o décimo ano. Era um pouco melhor do que a anterior. As pessoas já não me olhavam de lado quando eu passava. Acho que isso é um avanço. 
Hoje um rapaz veio falar comigo. Era bonito, muito mesmo. Sentou-se ao meu lado e ficou ali, a conversar comigo. Ou melhor, a falar para mim. Eu não participei muito. A imagem do Jaime não me saía da cabeça. Por mais que tentasse. Eu só pensava nele. Aquele rapaz tinha os mesmos olhos que ele. Olhar para eles, eram partir o que restava de mim. Para minha salvação, soou o toque e tivemos de ir para a aula. Ele tentou voltar a falar comigo, mas eu não consegui. Por mais que tentasse, eu não conseguia. 
Agora, no meu quarto, estou a tentar ligar ao Jaime. Tento-o todas as noites. Mas hoje, já o fiz 17 vezes. Eu sei que vou sempre ouvir a mesma voz. A dizer-me que o número não está ativo. Mas eu preciso de o fazer. Enquanto isso, seguro o colar que ele me deu, entre os dedos. É a única prova que tenho que ele é real. A única maneira que tenho de saber que não foi tudo um sonho. 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Puzzle

Era um puzzle. E era tão belo. Cada peça no seu lugar, cada traço completando o outro. Era pequeno ao início, eram peças básicas, muito básicas, certas linhas, certos pontos, mas tudo incerto, era tudo um esboço do que estaria para vir. A medida que o construíam, foi-se transformando em algo mais complexo. Algo mais do que simples peças, linhas ou pontos. As linhas transformavam-se agora retas, bem definidas, bem traçadas. Ângulos bem estruturados. Os pontos eram visíveis, cruciais neste empreendimento. Era algo imprevisível, e as peças jogavam umas com as outras. Fazendo imagens, criando emblemas. Construindo diálogos. Do nada apareciam mais pedaços, cada um diferente do anterior, cada um com um sítio próprio, cada um com o seu significado. Era, não, é um puzzle. Um puzzle difícil de entender, para muitos, até indecifrável. E o seu criador tem de ser astuto. Muito mesmo. Porque criar um puzzle não é tão fácil com parece. Não é só juntar peças, mas sim juntá-las de forma correta. Juntá-las de modo a que encaixem umas nas outras, de modo a que façam sentido, não são juntá-las para as despachar. E juntá-la corretamente requer tempo. Um tempo indefinido, mas que é um tempo. E quando se repara, desaparece uma peça. Procura-se por ela por todo o lado. Debaixo da mesa, talvez tenha caído. Atrás do sofá, talvez alguém tivesse passado e a tivesse empurrado para lá. Procuramos no quarto, talvez nós a tenhamos levado para lá e nem nos lembramos. Mas não. Essa peça desapareceu. Como se nunca tivesse existido à face da terra. Mas aquele lugar vazio no puzzle diz-nos o contrário. E então, o seu criador tenta desesperadamente remendar aquele buraco, aquele lugar vazio. Mas não consegue. Não há mais nenhuma peça como aquela. E ele fica à espera que ela aparece. E aparecem, aparecem muitas. Mas nenhuma com aquele tamanho, com aquele formato. E por mais tempo que passe, nenhuma peça volta a ser com aquela que foi perdida. E aquele lugar fica vazio. À sua volta, outras peças vão formando outras imagens, as linhas unem-se, os pontos seguem-se e as fotografias aparecem. E depois, outra peça desaparece. Outra vez. E outra vez. Aqui e ali, o nosso pequeno grande puzzle tem buracos, vazios contra a grandeza daquelas imagens. Isto, porém, não muda o facto de ser um puzzle lindo. É, apenas, incompleto. 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Piminho

‘Piminho, beijinho, beijinho’, eu era uma criança extremamente fofa, tens de admitir. Mas pronto, tu também és um primo extremamente fofo, também tenho que admitir. É pena não te poder ver mais vezes, poder chatear-te mais e mais, confesso que já tenho saudades de quando te via todos os dias. E tu? Tens saudades de quando me aturavas dias seguidos? Talvez tenhas, acredita, eu tenho e muitas. És um primo mesmo daqueles com quem dá gosto passar o tempo, com quem dá gosto falar e estar, com quem dá gosto provocar. Não passámos muito tempo juntos, ao longo destes anos, é bem verdade e, muito infelizmente, é uma daquelas verdades que gostávamos de tornar mentira. Mas, apesar de ter sido pouco, sempre nos demos bem, muito bem até. Não me lembro das vezes que te vi quando era pequena, era demasiado nova e esses tempos falham-me, mas acredito quando me dizem que te adorava e que só queria que me desses colo e beijinhos e sabes porquê? Porque agora, já crescida, sinto-me confortável contigo, apesar de ser um pouco tímida para com as pessoas que não conheço bem, eu sempre me senti bem ao pé de ti e ainda me sinto bem, muito bem, como já disse antes e repito, muitas e muitas vezes, que estar contigo é algo que me deixa feliz, muito feliz. Lembraste das minhas maluquices, a ver o Nemo? Pois é piminho, não é qualquer um que vê o meu lado maluco, o meu lado espontâneo. És um péssimo cantor, já alguma vez te disse isto? Eu também sou, todos nós sabemos não é, e odeio cantar (em público) mas juro, que se fosse para cantar de novo contigo, eu cantaria. Uma e outra e outra vez. Só mesmo porque o faria contigo, com o meu priminho já tão crescido. Com o meu priminho tão maluco, até mais do que eu, tão bem-disposto, cuja felicidade contagia os outros. E sim, contagia mesmo, essa tua alegria genuína, essa tua forma de estares sempre alegre, pronto para a brincadeira e para a palhaçada, essa tua paciência infinita para aturares as nossas pancas, as nossas grandes pancas, para todos os dias nos ouvires, para 'brincares' connosco e para discutires comigo qual é melhor, um livro ou um filme. Agradeço-te muito por isso, por seres um primo assim, tal e qual como és, por seres uma pessoa excelente e por me teres suportado durante estes pequenos (grandes) momentos. Acredita, cá dentro, estás bem conservado, juro. 



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Tenho 13 anos e (...)

Já não falo com o Jaime à imenso tempo. Não sei o que se passa. Simplesmente não sei. Um dia ele não ligou. Nem no dia a seguir. Ele ligava sempre. Pensei que se tivesse passado algo, por isso deixei estar. Ao quarto dia liguei de volta. Ele não me atendeu. Nem no dia seguinte. Nem no a seguir. Foi como se tivesse desaparecido. A minha mãe tentou contactar com a mãe dele, mas sem sucesso. Perguntei ao meu pai por ele, se o tinha visto, se sabia de alguma coisa. Mas ele também não sabia. Ganhei coragem e liguei a uma ex-colega minha. Ela também não sabia dele. Um dia, ele não tinha aparecido na escola. E a partir daí, nunca mais ninguém o viu. Ninguém sabe nada dele, ou dos pais.
Agora, passado 7 meses desses dias, ainda me pergunto se ele é real. Todos os dias lhe ligo, e todos os dias recebo o silêncio. Será que ele existiu mesmo? Ou foi produção da minha imaginação? Às vezes penso que não. Que ele não é real, que ele foi algo que eu inventei para me sentir melhor. Mas depois sinto aquele colar, frio, gelado contra a minha pele, e sei que ele teve de existir. Recordo aquele nosso toque, que é nosso, só nosso e de mais ninguém. E sei, sinto, que ele existe. E isso, leva-me a uma terceira conclusão, que me dói só de pensar. Mas rejeito-a. Se isso tivesse acontecido, o meu pai saberia. Ele era amigo de família desde os meus seis anos, ele teria sabido, bem como os colegas da escola. Eles saberiam, claro que saberiam. Óbvio que sim.
Talvez ele tenha apenas seguido em frente, mudado de casa, de cidade, quem sabe, até de país. Não tenho de me preocupar. Ele está bem. Ele tem de estar bem.

Chuva

A chuva é tão calma, tão tranquila, tão pura. Ela limita-se a cair, só a cair, unicamente a cair. Acalma-me tanto, andar à chuva, há tanto silêncio. Sem pessoas, a falar. Sem gritos. Sem berros. Só as pequenas gotas a caírem no passeio, umas atrás das outras. É um som tão bom. Daqueles que nos faz desejar mais. Daqueles que nos abre o espírito. Que nos faz lembrar de coisas que já há muito que tínhamos esquecido, coisas do passado. Que nos faz chorar, por essas mesmas coisas.  E chorar à chuva, é das melhores coisas que somos livres de fazer. Permite-nos pensar, para além daquilo que julgamos ser possível. Faz-nos ir mais além. Muito mais além. Sentir o cabelo a ficar molhado, aos poucos, ver a água a escorrer, tão devagar, como se não quisesse atingir o passeio. Pisar as poças de água, como se tivéssemos outra vez cinco anos, sem nos preocupar-mos com constipações ou doenças. Sabe tão bem, aquele cheiro a relva molhada pela chuva, aquela cheiro a terra húmida, que nos enche os pulmões. Não há carros, nas estradas já correm rios com a água toda que cai e ninguém quer arriscar um acidente. Sento-me ali mesmo, no meio daquilo tudo, a travar aquela ribeira que escorre, fico ainda mais molhada, encharcada até aos ossos, mas estar ali, é tudo o que quero. É dos melhores dias que há, os de chuva. Deito-me no alcatrão inundado, enquanto a chuva continua a cair, sem medo, sem qualquer tipo de medo.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Deixa-me dizer-te algo

Eu sinto tanto a tua falta. Tanto, mas tanto. E tu nem notas. Tu não entendes que eu preciso de ti. Que eu dependia de ti. Mas tu não entendes isso. Será que alguma vez entendeste isso? Sinceramente, acho que não. Acho que nunca entendeste o quão bonita era a nossa amizade. O quão grande eras no meu coração. Eras, sim eras. E agora, o vale que lá deixaste, ainda é maior. Dói tanto, quando julgarmos que conhecemos alguém,  e depois ver-mos que nada daquilo era verdade. Dói tanto, saber que fizemos tudo por alguém, e depois esse alguém não quer saber de nós. Como se nunca tivéssemos tido um papel fundamental na vida deles. E dói, dói muito, saber que vives como se eu nunca tivesse sido importante. E sabes? A dor começa a formar uma ideia na minha mente: nunca, mas mesmo nunca sentiste por mim, o mesmo que eu sentia por ti, nunca, mas mesmo nunca, tiveste tensões de cumprir as tuas promessas, e nunca, mas mesmo nunca, foi importante para ti. Ver nisto, que te tornaste? É tão doloroso. Tu não vês aquilo que és, tu não vês aquilo que mudaste, tu não vês aquilo que não faz sentido em ti. Tu não és assim. Mas sinceramente, eu não tenho mais forças para te fazer ver o que está à tua frente, bem à tua frente. Tu vais entender, acabamos sempre por entender aquilo que precisamos de entender. Só quero que saibas, que eu estive sempre aqui para ti. Que me trocaste por uma vida de mentiras. Talvez sejas mais feliz agora, nem sei se alguma vez te fiz mesmo feliz. Talvez nunca o tenha feito. Nunca foi capaz de te dar o que merecias. Foi isso? Se foi, desculpa, desculpa, desculpa, desculpa, desculpa. Mil vezes, desculpa. Mas eu tentei. Eu juro que tentei. Eu juro que me esforcei.

domingo, 7 de outubro de 2012

O mar é fiel 15*

Eu pensava que vê-lo sorrir, era belo, mas vê-lo dormir, é algo ainda melhor. Acaricio-lhe a cara, levemente, para não o acordar. Sinto a pele macia por debaixo da ponta dos dedos, O peito dele levanta-se tão suavemente. Quem me dera poder ficar ali, a vê-lo, a tocar-lhe. Era tão bom. Parece um anjo. 
Levanto-me a calço-me, amaldiçoando o facto de ser quinta-feira e de ter escola. A escola é uma verdadeira seca. Gente sem nada para fazer que não seja meter-se na vida dos outros. E o pior de tudo: são horas preciosas longe dele. Seria muito mau se faltasse hoje? Era só um dia..
Dou-lhe um último beijo, com cuidado, não o quero acordar, é demasiado cedo para isso. Pego na mala e caminho até à porta, cuidadosamente para não fazer barulho. 
- Lua?
Fogo.
Olho para trás e vejo-o, sentado, com a cara cheia de sono, imenso mesmo. 
- Desculpa, acordei-te?
Ele abana a cabeça, em sinal negativo e depois olha-me, com aqueles olhos sonolentos. Sinto-me a morrer.
- Onde vais? É tão cedo…
- Tenho escola e ainda tenho de passar por casa para ir buscar os livros.
Ele parece desanimado, verdadeiramente desanimado. 
- Mas já? É tão cedo - repete.
Vou até à beira dele e sento-me, dando-lhe outro beijo.
- Logo à tarde já me aturas outra vez, certo?
- Mas ainda falta tanto tempo para logo à tarde – ele pega na minha mão que lhe está a acariciar o peito e beija-a – vou morrer de saudades da minha princesa, entretanto.
Sorrio.
- Da tua princesa?
Ele aproxima-se e sussurra-me ao ouvido:
- Só minha.
Sorrio ainda mais e deito-me em cima dele, obrigando-o a encostar-se.
- Pensa na noite que passámos e as saudades vão logo embora – digo-lhe e ele sorri-me, aquele sorriso traquina que me faz amá-lo ainda mais.
- Sabes o quão bom é, saber que confias em mim o suficiente para termos tido uma noite assim?
- Porque não haveria de confiar?
Ele encolhe os ombros.
- Não sei..
- Tu não confias em mim?
- Claro que confio!
- E porque? Sabes ainda menos de mim do que eu de ti...
- Mas eu sei que tu não me mentes, eu sei que não.
Ele beija-me.
- Eu também sei que tu não me mentes.
Abraço-o. Sentir o seu corpo junto ao meu, é algo tão bom, mas tão bom.
- Gostaste...?
- Não…
- Não?! – levanta-se tão rápido, que tenho de me agarrar ainda mais ao seu pescoço para não cair.
Rio-me, e a gargalhada espalha-se pela divisão. Ele parece extremamente alarmado.
- Não – digo, enquanto lhe afasto os caracóis da frente dos olhos. E num sussurro, acrescento – eu amei.
- Parva, nunca mais faças isso - ele ri-se. Eu amo ouvi-lo rir-se - eu também amei.
E beija-me. Faz-me sentir viva 
- Eu amo-te. Sabes disso, não sabes?
Sorrio e toco com o meu nariz no dele. Como é que alguém pode sentir tamanho sentimento?
- Só se souberes como eu te amo.
Ele não responde. Beija-me de novo e eu entrego-me ao beijo, por completo. Sinto as mãos dele a subirem-me pelas costas e obrigo-me a afastar os lábios.
- Mas por mais que eu te ame, há uma coisa chamada ‘escola’ e outra chamada ‘minha mãe’ que me vai matar se eu começar a faltar, por isso… - e dito isto levanto-me, o que o deixa visivelmente desapontado.
- Vais ter comigo à gruta logo, depois da escola?
- Aparece, e descobres – digo e ele sorri-me.
Pego na mala e saio. Ainda o oiço falar, antes de fechar a porta.
- Até logo!

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O mar é fiel 14*

A casa do Frederico é, sem dúvida alguma, a casa mais estranha em que já entrei. Nem sei se casa, é o termo correto. Consiste em duas divisões, única e exclusivamente, casa de banho e depois outra que serve de sala, cozinha e quarto. É o contraste da minha, com todas aquelas divisões e quartos que nem utilidade têm. Por isto, prefiro, instintivamente, a dele. 
- Pensei que os rapazes fossem desarrumados – digo, com um sorriso na voz. 
Apesar de pequena, cada coisa tem um sítio e nada está fora do lugar.
- Ah Ah Ah, que piada, ainda há rapazes arrumados, sabias?
- Sim, mas tu já não és um rapaz, pois não?
- 19 anos, está mais do que dentro dos limites – diz-me, piscando o olho.
- Ah, claro, claro.
19 anos. 17 anos. 2 anos de diferença. Faz mesmo a diferença?
- Bem, deves querer tomar banho, não?
- Vai tu primeiro, estás em pior estado que eu.
- Não, não, senhoras primeiro - e faz uma vénia.
- Sempre muito cavalheiro.
Ele ri-se. Ultimamente, ele ria-se muito. Eu adoro isso. Vê-lo feliz.
- Sabes? Eu tenho um problema.. - digo.
- Qual?
- Visto o quê? Não tenho roupa..
Pouso a mala na cama dele. É grande, de casal. 
- Eu arranjo-te qualquer coisa, espera só um bocadinho – e dito isto, vira-me as costas e entra numa porta que eu nem dei conta que existia. Continuo a observar aquele espaço, tão diferente. Há uma cama, mais ou menos a meio. Em frente há um pequeno móvel com uma televisão daquelas antigas. Num dos lados, é a 'cozinha'. No outro, há armários e estantes. 
Passado um bocado, ele regressa e mete-me uma camisola, calças e roupa interior de rapariga. Olho para ele, com a pergunta na ponta da língua mas ele apressa-se a desculpar-se.
- Não é meu! Quer dizer, óbvio que não é meu, mas também não é de nenhuma amiga minha, era da filha do dono disto. Ela esqueceu-se cá.
- Claro…
- Eu não nunca fui rapaz dessas coisas oh - sorri-me e encaminha-me para a casa de banho.
- Pronto – diz, ao tirar uma toalha de um móvel branco – está aqui, está à vontade sim?
Fica. Fica nada, estás parva? Por favor.
- Está bem, obrigada – digo e sorrio.
Pega-lhe na mão, diz-lhe para ficar. Ele quer isto, tanto quanto tu.
- Bem, até já.
Agora!
Agarro-lhe levemente na mão, o que o faz parar. O meu coração dispara. Será que ele o ouve? Que estou a fazer? O que queres, o que precisas. Mas é correto? Claro que sim.
Não sei se ele me ouve, ou compreende. Só sei que ele se vira para mim, devagar. Sinto-o a agarrar-me na cintura e a puxar-me para ele. As minhas mão, agarram-lhe o pescoço. Ponho-me em bicos de pés, e chego os meus lábios aos dele. Ao inicio, tenho medo. Eu e ele. Sinto-o no seu toque. Mas depois, perde-mo-lo. Ele encosta-me ainda mais a si. Nunca senti nada assim. As borboletas no meu estômago imploram por mais.
- Queres que fique? - diz, ao afastar os lábios.
- Quero - a respiração está tão irregular, que quase me atropelo nas palavras.
Ele sorri. É lindo vê-lo sorrir. Ele beija-me outra vez. Sinto-lhe as mão a tirarem-me a camisola. E depois eu tiro-lhe a dele. Vejo-lhe os abdominais, tão perfeitos. Acaricio-os, sentindo o coração dele a bater descontroladamente no peito e depois, beijo-os: a pele por debaixo dos meus lábios arde. Ele beija-me, o pescoço, os ombros, os braços. A minha pela ferve, ao toque dele. Sinto-me mais viva do que nunca, como se aquele fogo jamais se extinguisse. Como se aquele momento fosse eterno.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O mar é fiel 13*

Sinto-me tão confusa.
- Porque é que te preocupas? Porque é que arriscaste a vida desta forma? Não importa, eu não importo.
- Importa sim. Pela primeira vez, alguém gostou de mim pelo que sou e não pelo que tenho. Não achas que essa pessoa é importante?
- Eu…
Não consigo terminar a frase. Ele abraça-me, um abraço desesperado, um abraço de medo, como se temesse não poder voltar a fazê-lo.
- Eu preciso de ti. Não me ouviste? Tens valor, és importante. - aquelas palavras, fazem-me sentir tão bem; não me lembro da última vez que foi importante para alguém, a última vez que tive valor.
Não consigo responder-lhe. Esta proximidade tira-me o ar, prende-me as palavras na garganta e tira todos os pensamentos da minha mente. 
BAM.
O trovão chama-nos à realidade. Ele afasta-se de mim e eu tento normalizar a respiração, inspirando e expirando várias vezes. Quando reparo, ele já está de pé, com um braço estendido na minha direção.
- Anda, temos de sair daqui.
Agarra-lho a mão com força e levanto-me. Encosto-me a ele. Sinto-me tão bem ali, mas tão bem. Eu sou mais baixa que ele, aí uns dez centímetro. Ele ri-se alto, uma gargalhada que difere de tudo o que está ali. Afasto-me e olho para ele, tentando entender o motivo da sua felicidade. Ele, porém, limita-se a encolher os ombros. 
- Não tens frio? Estão cerca de 10º, menos até, e tu só tens uma camisola a proteger-te.
- Sim, mas eu ainda tenho umas calças para vestir, enquanto que tu tens a roupa toda encharcada..
Ele olha para baixo e pela cara que faz, algo me diz que não sabia que se tinha lançado ao mar totalmente vestido.
- Pois, talvez seja melhor ir a casa mudar de roupa.
Olha para mim e aceno com a cabeça. Vou até onde deixei as minhas calças. Grande desilusão: estão empapadas, com areia, água do mar e água da chuva. Estou a fitá-las, quando o Frederico vem ter comigo.
- Não creio que isso vá ser muito confortável…
- Nem a ti nem a mim.
Suspiro. Não quero nada ir a casa, isso significa ver a minha mãe. Mas a ideia de ficar ali, exposta ao frio, também não me agrada muito. Começo a deslocar-me pela praia a apanhar as minhas coisas. Perdi por completo as meias, e a minha t-shirt está tal e qual como as calças. Apanho os ténis e a mala. Agradeço ao meu subconsciente por a ter atirado para tão longe do mar.
- Anda daí, vamos para minha casa.
Olho-o, completamente embasbacada. Ele cora, e baixa o olhar. Sinto as bochechas a arder. Será que também estou a corar?
- Pronto, era só uma ideia. Se não quiseres, eu entendo, na boa.
- Não, não. Eu quero.
- A sério? – e olha-me, com o maior sorriso do mundo. Um sorriso belo, por sinal.
Tens a certeza?
- Sim, acho que neste momento é o melhor sítio para eu ir.
Ele estende-me a mão:
- Anda, então.

domingo, 30 de setembro de 2012

O mar é fiel 12*

Deixo a minha mala cair na areia. Enquanto corro, tiro os ténis, atiro as meias, dispo a camisola, a t-shirt, as calças e lanço-me para o mar gelado. Ele está em fúria, tal como eu. Como se sentisse a minha revolta, como se senti-se a minha dor, como se fosse dominado pelos meus sentimentos. Venho à tona, para recuperar o ar mas uma onda bate-me em cheio na cabeça, fazendo-me engolir imensa água. Tento vir outra vez à tona, mas outra onda embate-me de novo. Os pulmões ardem-me, ansiando por algum ar. Frederico. Tento nadar para fora da zona onde as ondas rebentam, ignorando a dor no meu peito, a necessidade desesperante de ar. Cãibras. Os meus braços estão entorpecidos, a água estão tão gelada, parece que estou rodeado de cubos de gelo. 
Tento vir à tona. Tento, não, consigo. Respiro o ar gelado da praia, sentido um grande ardor na garganta, como se estivesse a respirar aço. Bato os pés freneticamente, para me manter na superfície. O ar completa-me os pulmões e depois sai para a atmosfera. Sinto o meu nariz congelado. Ignoro a dor. Levo um pouco de tempo a entender que está a chover. Tempestade, é isso que vai ser esta noite, uma enorme tempestade. Frederico. A água da chuva, do mar e do choro misturam-se na minha cara, toldam-me a vista. Vou ao fundo. Nado, não sei para onde, só sei que agito as mãos, os pés, os braços, as pernas. Quero deixar aquela raiva, aquela dor. Ela não merece, ela não merece. Ela é tua mãe. Ela não quer saber de mim. Ela quer-te proteger. Ela não se importa comigo. Ela ama-te. Ela não sabe o que é o amor porra. Enganaste. 
Os pulmões imploram por ar, mas eu não consigo vir à tona. As minhas pernas recusam-se a bater, já não aguentam. Não consigo estar quieta no mesmo sítio, a corrente é demasiado forte. Tento olhar em volta mas os olhos ardem-me por causa do sal. Tento desesperadamente ir à superfície. Os meus pulmões dói-em, uma dor lancinante. Mexo as mãos e consigo finalmente inspirar. Nevoeiro. Frederico. Não vejo a costa, não vejo as rochas, não vejo nada para além daquele imenso mar, onde me perdi. Tu és fiel, por favor, por favor, tu és fiel! Se calhar é isto mesmo que ele quer, que eu vá com ele. Se calhar quer que eu deixe de lutar, que eu pare, pura e simplesmente, de viver. Frederico. Não posso. Frederico. Precisa de mim. Frederico. Ele precisa de mim. Frederico. Não o posso deixar.
- LUA? ONDE ESTÁS, LUA?
FREDERICO. O ardor da garganta impede-me de gritar, por isso tento seguir o som. Frederico. Frederico. Frederico. Onde estás? Por favor. Tem calma, ele vai conseguir chegar a ti. 
- LUAAAAAA ?
Estou aqui... 
Sinto um braço a agarrar-me a cintura e uma voz ao meu ouvido.
- Deixa-te levar, vem comigo.
Agarra-me e vou com ele, demasiado fraca para contestar. Sabe-se lá como, ele consegue levar-nos por entre as ondas, até à areia. A tossir e agarrada a ele, sento-me não areia. 
- Que estavas a fazer? DIZ-ME? Queres morrer? É disso que se trata?
Não sei se ele sabe que está a gritar, mas aquele som assusta-me, mais do que aquilo que já estou.  Encolho-me, agarrada à barriga. Não lhe consigo responder, tenho desesperadamente controlar a respiração, mas o ar é tão pesado, tão frio, tão desagradável que os meus pulmões gritam de dor. Estou gelada até aos ossos e noto, pela primeira vez, que estou em roupa interior. Ele também deve ter notado, pois vai-me buscar a minha camisola e veste-ma, como todo o cuidado. Depois disso, ajoelha-se à minha frente e noto que ele está a chorar. Agarra-me nas mãos e olha-me bem nos olhos.
- Nunca mais faças isso, por favor, eu preciso de ti.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Poço

Está tão escuro, tão cinzento, tão sombrio. Olho lá para o fundo, primeiro a medo. É assustadora, a vista de cima. Sei que é perigoso, posso cair, nem sei a altura que tem, mas não consigo evitar, a curiosidade é tão grande que não consigo resistir-lhe. Respiro fundo e concentro-me, tentando notar algo que não seja a cor preta. Não sei o que esperava. Água, talvez. Sim, esperava isso. Afinal, o que é um poço sem água? Não faz sentido. Afasto-me do muro e procuro uma pedra, grande. Está tanto nevoeiro, mal consigo ver um palmo à minha frente. Ajoelho-me, encontrá-la. Costumavam haver ali tantas, porque é que já não existem? Realmente, aquele sítio mudara muito desde os tempos em que ia ali. Não interessava. Pedras eram pedras, não se iam simplesmente embora. Tem de haver ali uma.
Não sei quanto tempo passo ali, de joelhos, a tentar ver algo, a tentar encontrar aquela pedra que não quer aparecer. Procuro, procuro e finalmente encontro. É grande, vá, talvez média e pesada, tal como eu queria. Vou de novo para junto do lago e largo-a, deixando-a cair no vazio. Debruço-me, até ficar com a cabeça totalmente dentro dos muros do poço. As minhas mãos agarram-se às bordas, procurando estabilidade. Espero, espero e espero até que oiço um 'ploc' a avisar que a pedra já se encontra lá em baixo, em água. Que distância, meu Deus. Quanta água haverá lá em baixo? Será muita? Maior do que a altura da pedra é, de certeza, pois amparou a sua queda. Ampararia a queda de um ser humano? Teria altura suficiente para tal? Quem me dera saber. 
Tento sair, mas o pé escorrega-me na lama e tenho de me agarrar com força ao muro. Aleijo os dedos ao raspá-los no muro, arranho-os. O meu coração dispara. Respiro fundo e tento acalmar-me. Tento sair outra vez, com calma, mas o pé falha-me, e desta vez, as mãos não aguentam o peso e eu sinto-me a cair. A minha cara bate nas paredes do poço, os pés procuram desesperadamente um apoio, os dedos buscam tijolos saídos do muro para se agarrarem, mas só encontram musgo e plantas que se partem ao toque. O meu corpo tenta encontrar estabilidade, equilíbrio. Vou embatendo em fios, quanto mais deixo, mais chegados e próximos são. Continuo a cair, a cair e a cair, o que me parece ser uma eternidade. Os pulmões sentem necessidade de respirar e quando o faço noto o odor do ar, a pobre, bafiento. Quando dou por mim, estou  dentro de água. 
Uma água oleosa, nojenta. Bato os pés e venho à tona, inspirando profundamente, deixando aquele ar sujo entrar dentro de mim. Tusso, pois tenho algo na garganta. Não quero saber o que é, tenho nojo só de pensar nisso. Olho para cima e vejo um ponto, um único ponto de luz, lá em cima de tudo, bem lá ao fundo. Tento olhar em volta, mas não consigo ver nada. Não entendo se isso é bom ou mau. O pavor invade-me e sinto o estômago às voltas. ''AJUDA'', grito mas ninguém me ouve. Quem estará ali, àquela altura, naquele sítio? Ninguém, só uma louca. É isso mesmo, uma louca como eu, que agora está presa num poço. 
A minha mente começa a pensar em baratas, lagartos, sanguessugas e outros animais que possam viver ali, o que só aumenta o meu terror. Bato as pernas e agito os braços, freneticamente, agindo por medo, por pânico. Agito a água toda e grito, berro até. Tento normalizar a respiração mas não consigo. Ninguém está ali, para me acudir, ninguém está ali para me ajudar, para me ouvir. Ninguém. Estou sozinha. Quanto tempo aguentarei aqui? O meu corpo ficará cansado, começarei a ficar com cãibras, vou ficar com fome e sede. Começo a sentir coisas nas minhas pernas, no meu corpo. Estou a chorar, as lágrimas escorrem-me enquanto a minha mente procura furiosamente uma saída, mas não há. Tento escalar a parede, mas esta está húmida, não há pedras saídas, não há nada. 
E como uma criança que acaba de nascer, berro a plenos pulmões.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Tenho 12 anos e (...)

Sentir falta faz parte.
- Sim, está tudo bem e contigo?
É o que digo todos os dias.
- Claro que ando bem-disposta Jaime.
Quando de manhã quando acordo sem energia. 
- Sim, a escola vai bem.
Quando chego à escola e desabo por ele não estar lá. 
- Tenho que prestar, tenho que ter boas notas. E tu? Como te estás a safar sem mim?
Quando entro na sala e mal consigo prestar atenção porque não tenho o seu calor reconfortante sentado ao meu lado. 
- Eu sou sempre forte Jaime, como tu me ensinaste.
Quando me faço de forte, há noite, quando eu e ele falamos à noite, para tentar matar esta saudade que se meteu entre nós. 
- Sim, também tenho de ir, já é tarde. Beijinhos, Jaime. Também gosto muito de ti.
E quando depois, choro por não o ter comigo. 
Vou para o meu quarto.
Não conheço ninguém aqui, nem passado um ano as coisas melhoraram. Continuo a não conhecer ninguém. A não me dar com ninguém. Lembro-me da minha antiga escola. Para além do Jaime, não tinha amigos. Ele tinha. Muitos. Talvez se esteja a dar bem, sem mim.
Não. Ele não consegue. És a sua protegida, lembraste?
E uma mão vai instintivamente agarrar o colar que ele me deu. 
Ele tem pessoas que cuidam dele. E eu terei de cuidar de mim. Tem que ser.
Vou fazer um esforço, vou-me empenhar.
Choro ainda mais e abraço a almofada. Isto é tão doloroso.

O mar é fiel 11*

O tempo passa a uma velocidade estrondosa. Ainda ontem estava irritada por ser verão e hoje já tenho de vestir um casaco para vir até à praia. É, realmente, incrível. Dantes, durante o verão, era eu que tinha de esperar por Frederico, todos os dias. Ia para a praia, e ficava sentada na areia, a vê-lo, simplesmente a vê-lo a fazer o seu trabalho. Não o podia distrair, afinal de contas, ele era o nadador-salvador, tinha de ter atenção. Então ficava ali, a observar cada traço do seu corpo, a escutar o mar, a desejar arduamente que a noite chegasse. Que pudéssemos ir para a nossa gruta. Nadar. Rir. Conversar. E conversávamos, muito mesmo. Ele contava-me coisas sobre o seu passado, os seus 'amigos' e colegas, a sua família. Eu tentava falar de mim, mas era difícil, pelo que, normalmente, falávamos sempre dele. 
Agora, de inverno, durante as aulas, já não é assim. Entre aulas, testes, trabalhos de grupo e trabalhos de casa, é difícil estar com ele. Por norma, levo os livros e cadernos e vamos os dois para a gruta, sozinhos e ele fica a ver-me a estudar, sem proferir um único som. Ele consegue ficar calado durante muito tempo. Tenta sempre conciliar os seus trabalhos com o meu horário, mas quando não consegue, troco o nosso paraíso pelo meu quarto.  
O grande problema e o nosso maior inimigo, é o tempo. Temos tido sorte, tem estado sol e algum vento, só um ou outro dia de chuva. Quando assim é, vamos para o café do velho rezingão. Ficamos lá numa mesa ao canto e ninguém dá por nós nem nós por ninguém. 
A cada dia que passa, a nossa relação melhora. Somos amigos. Recordo-me disto, todos os dias. Para que fique claro. Mas custa tanto. O desejo de avançar para algo mais é devastador. Mas tenho tanto medo. Pela primeira vez, estou a aproximar-me de um ser-humano. Pela primeira vez, estou a confiar em alguém. Alguém que não o mar. Ah, o mar. Tenho tantas saudades dele. Apesar de passar o tempo quase todo na pequena gruta, já não tenho uma ligação concreta com o mar à muito. Um momento só comigo e com ele, agora passo o dia com Frederico…
- LUA!
O grito assusta-me de tal forma, que salto e acabo por cair no passeio. Olho em volta e vejo a minha mãe. Oh não, por favor, hoje não.
- Anda para dentro, temos muito que falar – e dito isto, volta-me as costas e entra dentro de casa.
- Obrigadinha pela ajuda – resmungo, entre dentes, levantando-me. Entro em casa e fecho a porta atrás de mim.
- O que é que foi?
- Olha o tom, minha menina, sou tua mãe, exijo respeito.
Sinto a resposta presa na garganta, mas esforço-me por a deixar lá.
- Gostaria de saber, se não for muito incómodo, porque raio não estavas tu em casa quando cheguei!
Senti a raiva a invadir-me.
- AS PESSOAS NÃO VÃO FICAR ETERNAMENTE À TUA ESPERA SABIAS?
- Olha o tom, já te disse. Falei com a empregada, ela diz que tu só vens a casa dormir, o que é que andas a fazer afinal?
- A empregada tem nome: é Dona Matilde. E se passasses mais tempo aqui do que fechada em aviões, saberias!
- Eu exijo saber!
- Não tens esse direito! Vens a casa uma vez em cada três meses e já pensas que mandas? 
- Até teres 18 anos, quem manda aqui sou eu por mais que tu queiras ou não.
- Quero lá saber. Eu tenho boas notas, porto-me bem, não me meto em sarilhos e não dou trabalho nenhum – qual é o problema de sair? Não é o que tu fazes o ano todo?
- Isso não te dá o direito..
- O que não te dá direito é estares completamente nas tintas para mim e depois chegas aqui como se fosses rainha, eu não quero saber se tu achas as coisas adequadas ou não, a tua porcaria de opinião pouco me importa!
Nem entendo que estou a gritar, nem entendo que me descontrolo, nem entendo que já estou com lágrimas grossas a escorrer-me pela cara.
A minha mãe está calma, muito calada e branca, muito branca.
- Lua, eu…
- Esquece, não quero saber! Queres saber o que tenho feito? Tenho estado com um amigo. Problemas? Não te preocupes, ao contrário de ti, ele sabe cuidar de mim!
Viro-lhe as costas, não quero saber de mais nada. Abro a porta de tal forma que ela quase que sai dos gonzos. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O mar é fiel 10*

Felicidade, é o que melhor me descreve neste momento. Enquanto nadamos juntos. Vimos à tona, respiramos e voltamos para debaixo de água. Ele agarra-me e eu agarro-o. Bem junto a mim. Que estás a fazer? Ele é um desconhecido! E no entanto, sinto que o conheço. Sinto que o conheço à anos. Aquele estranho, seja lá quem for, faz a minha pele arder, mesmo naquela água gelada, e ao mesmo tempo ter arrepios pelo corpo todo.
- Que achas de sairmos um pouco de dentro de água?
Desde que estejamos juntos, é-me igual.
- Sim, pode ser.
Ele sorri e eu sorrio ainda mais. Senta-mo-nos na areia, mas não muito próximos. Sinto as palavras na minha garganta, tenho de as dizer. Vá, estúpida, pede desculpa. Mas e se ele não desculpar? Mas estás parva? Viste bem como ele está contigo? Sim, mas.. Pede-lhe desculpa duma vez e
arruma o assunto!
- Frederico? – sabe tão bem dizer o nome dele.
- Sim, Lua? – sabe ainda melhor ouvi-lo dizer o meu nome.
- Desculpa.
Ele olha-me, sem entender. A sério que já esqueceu?
- Por ontem. Desculpa ter reagido daquela maneira. Desculpa ter-te falado naqueles modos. Não merecias, fui parva, desculpa, a sério. Tu ajudaste-me, com tanta paciência e eu perdi as estribeiras daquela forma, não o devia ter feito, desculpa
- Hey, calma.
Ele aproxima-se de mim e percebo que falei com a voz cheia de culpa, de desespero, de medo que ele não perdoe, atropelando as palavras umas nas outras.
- Por favor, desculpa, a sério - respiro fundo e noto que tenho água nos olhos. Parva, não chores!
- Não faz mal, a sério. Eu entendo.
- Entendes? – Olho-o bem nos olhos e olho bem nos meus.
- Sim, entendo. O medo de alguém só querer saber de nós porque temos dinheiro. Porque somos ricos. Eu sei o que isso é?
Ele já se afastou de novo.
- Como… como é que entendes?
- Porque eu já passei por isso – a sua voz está desprovida de calor. Está fria, mais fria do que aquele ar. Fico calada, até ele continuar. Será que vai confiar o suficiente em mim para me contar aquilo?
Passado um bocado, ele fá-lo.
- Quando era mais novo, era rico. Podre de rico mesmo. Eu podia comprar o que quisesse quando quisesse. Os meus pais... Eles eram do mais snobe que há. As pessoas eram minhas amigas pelo dinheiro. Ninguém entendia que eu não queria aquilo, que eu não queria ser rico, que eu não pertencia aquele mundo. Eu tinha tudo mas não tinha nada, entendes? Ninguém me queria ouvir, ninguém me queria feliz, ninguém queria o meu bem-estar.
Isto ataca-me o coração. Por completo. Se ele soubesse como o entendo, se ele soubesse isso.
Vejo que ele se está a tentar acalmar. Tem lágrimas nos olhos. Não quer dar parte fraca. Ele não é fraco!
- Então fugi - continua - Tinha 15 anos na altura. Ninguém me procurou. Acho que os meus pais devem ter inventado uma mentira qualquer, não sei. Eles sempre ligaram mais às aparências do que a outra coisa qualquer. Comecei a minha vida noutro lado. Nunca fui de muitas despesas. Trabalhava a tempo inteiro num bar ao pé da praia, no verão. Fiquei em casa de um amigo meu, que conheci nas férias. A mãe dele aceitou fazer de minha encarregada de educação. Durante o ano-lectivo, tinha um part-time. Não ganhava muito, mas era o suficiente para mim. Quando fiz 18 anos, vim para aqui. Trabalho como nadador-salvador no verão e de no resto do ano, faço um pouco de tudo. Nunca mais fiz amigos, desde que para aqui vim. Até ontem, acho eu. 
Olha-me bem nos olhos. Sei que é verdade. O que ele me contou. Eu sei que sim. Como sabes? Vais confiar nele? Ele é um estranho. Não, não é. 
Aproximo-me delem, que já está com grossas lágrimas a caírem lhe no rosto. Sento-me ao seu lado e toco-lhe na face
- Eu estou aqui. Entendes? Eu percebo-te tão bem, eu sei o que é estar sozinha. Mas tu não estás sozinho. Não mais. Eu prometo. 
- Porquê? Tu não me conheces, como sabes que disse a verdade?
Não respondo, limito-me a encolher os ombros e a abraçá-lo.