domingo, 1 de dezembro de 2013

Quarto Vazio

Num quarto completamente vazio, vejo-me reflectida nas paredes de cal nu. No branco mais puro, a minha imagem aparece distorcida, inibida de pudor. Parece algo irreal, como que num sonho que tende a ser um pesadelo. Vejo-me escrita, sem condescendência alguma, numa tinta preta, letra ilegível, que se confunde com pouco mais que um pequeno rabisco em toda a pele. A caneta jaz algures no chão e por mais que me esforce, não a alcanço. Ela rebola pelo azulejo como que numa brincadeira que a diverte, apenas porque pode. O desespero de querer sair daqui já não existe. O pânico de estar fechada numa caixa há muito que foi embora. Neste momento, apenas há uma esperança - ainda que vã - de algum dia conseguir sair daqui. Uma esperança - ainda que pouca - que alguém, algures, saiba onde estou e me tente resgatar. Contudo, o tempo passa, ninguém vem e a esperança vai-se desvanecendo. 
Oiço uma voz que é minha, porém, eu não falei. Oiço o meu timbre a desvanecer-se no ar, no entanto, não foi eu que o comecei. Ao olhar, reparo no meu reflexo, sentado, fixado em mim. Desprovido de qualquer emoção, começa a falar. Num disparar de palavras, ataca as poucas defesas que me restam. Tento não ouvir, bloquear aquele som da minha mente, mas ele é mais forte e acaba por vencer. Sento-me, sentido o frio na pele que já perdeu a sua cor, e apenas escuto. Não sei se durante minutos, não sei se durante horas, não sei se durante dias. A noção de tempo já não mora aqui, deixou-me, deixando somente uma desorientação que há muito desisti de consertar.
Ele continua o seu discurso e eu pergunto-me quando ; todavia não me parece que vá acontecer. Isto não é uma pessoa, com necessidades, que precise de descansar. Não. Isto é algo que apenas existe, como um objeto à qual deram o dom de falar mas não o de sentir. Uma coisa, isso sim. A minha mente implora para que tudo acabe, que
Aos poucos, os meus olhos vão-se fechando. As pálpebras esforçam-se por não cair, mas o cansaço é tanto que é quase impossível continuar desperta. O meu corpo cede e a voz vai-se tornando menos nítida, menos clara. Paz, é tudo o que consigo pensar.

sábado, 16 de novembro de 2013

3*

Acordou no dia seguinte, com um soco na porta. Não se queria levantar, não queria ir para a escola e muito menos queria enfrentar aquele dia. Porém, obrigou-se a sair da cama e a ir tomar duche. Pôs-se à escuta, para tentar reconhecer o barulho de passos mas só conseguir distinguir o silêncio. Desceu as escadas e foi para a casa de banho. Enquanto estava na banheira, sentiu a água a fustigar-lhe os músculos doridos e entorpecidos do cansaço. Quando terminou, enrolou uma toalha à volta da cintura, saiu da banheira e, ao limpar o espelho, viu o seu próprio reflexo. Estava longe de se parecer com os rapazes da sua escola, de ter músculos ou um bronzeado, pelo contrária, era bastante magro e branco, com o corpo sulcado de sardas e cicatrizes. Tentou, tal como muitas vezes antes, sentir algum conforto ao ver-se mas por mais que se esforça-se, não conseguia. Acabou por ir para o quarto, vestiu-se e passado dez minutos já estava na paragem.
O trânsito era caótico e o som constante das buzinas insuportável. Queria fumar um cigarro antes de entrar nas aulas mas tinham acabado e não se sentia com paciência para ir a um café comprar.
Quando se fartou de esperar pelo o autocarro, decidiu ir a pé, pois certamente chegaria lá mais depressa. Tirou o ipod da mala, começou a ouvir música e encaminhou-se para a escola. Por ele passavam idosos, crianças, pais com os filhos, varredores de rua e enquanto ele notava em todos, nenhum notava nele.
Depressa o corpo se começou a queixar com dores, no entanto ele ignorou-as. Continuou a andar, quando sentiu alguém tocar-lhe no braço:
- ..dia, Rui.
Olhou para trás e viu uma rapariga da sua turma a sorrir-lhe. Sara, se não se enganava. Tirou os phones para a cumprimentar, porém, antes de o poder fazer, ela soltou um grito abafado:
- O que é que te aconteceu?
A pergunta surpreendeu-o. Não estava à espera que alguém lho perguntasse, assim tão directamente, como era hábito e costume. Sentiu-se desprevenido, sem resposta. 
- Rui?
- Caí das escadas - foi tudo o que conseguiu dizer.
- Caíste das escadas?
Ele confirmou com um gesto e desviou o olhar. Ainda assim, ela não desistiu:
- Meteste-te gelo ao menos? Parece feio..
- Não, não me lembrei. 
Mesmo não estando convencida, Sara acabou por deixar o assunto em suspenso:
- Posso-te fazer companhia até à escola ou preferes ir sozinho?
Pela segunda vez, uma simples pergunta apanhou-o de surpresa. 
- Sim..
- Então vamos - começou a percorrer a rua e ele seguiu-a.
Durante uns minutos, caiu um silêncio entre os dois. Ele não se sentia capaz de iniciar fosse que diálogo fosse. Ainda se sentia atordoado com o que provavelmente foi a conversa mais longa desde à muito tempo. O à vontade dela deixou-o perplexo. Só quando chegaram à escola é que ela voltou a falar:
- Onde é que te meteste ontem?
Ele olhou para ele, como se não entendesse.
- Ontem, depois da primeira aula, desapareceste. Onde foste?
Ele tinha mesmo notado que eu me foi embora?
- Para casa. 
- E caíste das escadas a caminho ou lá?
- Lá.
A campainha soou e eles foram para a sala. Mesmo antes de entrarem, ela olhou para ele e disse:
- Tu bem que tentas, mas não me convences.



sábado, 19 de outubro de 2013

2*

Chegou a casa que, como mal passava das 11 horas, estava vazia. Era constituída por uma sala de jantar, uma sala de estar, uma cozinha e uma casa de banho no andar debaixo e no de cima, ficavam os quartos. O dele ficava no sótão. Tinha apenas alguns móveis velhos e comidos pelo tempo: uma cama, uma armário e algumas estantes. Ao contrário do resto da casa, esta divisão era suja e caótica. Havia todo o tipo de coisas espalhadas pelo chão e eram poucos os dias em que se dava ao trabalho de fazer a cama. Deixou a mala num canto, pôs o ipod a carregar e decidiu aproveitar o raro silêncio que ecoava na enorme moradia devorando mais uns capítulos do livro que iniciara à poucos dias. 
Adorava ler. Era a sua escapatória do dia-a-dia, da realidade que o consumia e nunca se cansava de o fazer. Adorava passar serões agarrado a um livro. Adorava a sensação de fazer parte da história e vivia-a quase tanto como a viviam as personagens. Deixava-se levar pelo enredo, pelas emoções descritas ao longo das páginas. Os livros davam-lhe uma nova perspectiva do mundo em que vivia, quer fosse ela positiva ou negativa. Para ele, isso era mais do que qualquer outra coisa que alguma vez lhe tinham dado.
Só parou quando já estava demasiado escuro para conseguir distinguir fosse o que fosse e por isso deixou o livro e decidiu ir ouvir um pouco de música. Não havia luz no sótão e também ninguém achou necessário haver. Tanto se lhe dava, o escuro não lhe metia medo, pelo contrário, fazia-o sentir-se bem e para além disso, já estava habituado. Deitou-se na cama e deixou que a mente passeasse por onde queria ir até chegar a várias memórias que não queria recordar mas que agora não conseguia evitar. Eram tantas, e vinham sem qualquer aviso.
Acabou por adormecer e só acordou passado um pouco, quando ouviu a porta de baixo a bater e, de seguida, gritos. Instintivamente sentou-se, a tremer, e o coração começou a bater com a um ritmo alucinante. Escutou com mais atenção e ouviu o andar pesado de alguém que atravessava a entrada.
Tem calma, não deve ser nada, não vai acontecer nada. 
Mas mesmo assim não conseguia acalmar-se. A respiração começou a alterar-se e quando notou já estava a ofegar. Esforçou-se por não chorar, não queria parecer fraco, mas não conseguia, nada no corpo lhe obedecia e acabou por sentir as lágrimas a molharem-lhe as bochechas.
- Onde é que está aquele fedelho?
Sentiu-se paralisar pelo medo. Não reagia, não falava, apenas tremia e chorava,  sem conseguir parar.
- Deve estar lá em cima.
Queira mexer-se, fazer alguma coisa, evitar o que estava para acontecer mas não conseguia, não conseguia fazer nada, somente ficar ali sentado à espera de algo que nem ele sabia o que era.
Ouviu alguns passos, enquanto alguém subia as escadas e aí começou o seu pesadelo.

sábado, 28 de setembro de 2013

1*

Com a monotonia de mais um dia, ele tirou um cigarro do maço, colocou-o entre os lábios e, com as mãos a proteger a chama da leve brisa que já se fazia sentir, acendeu-o. Encostou-se à paragem, observando as pessoas que corriam, apressadas para chegar ao local que pretendiam ou atrasadas para chegar ao trabalho. Ridículo, era tudo o que conseguia pensar perante aquela pressa que impregnava a rua. 
Deu um último bafo no cigarro e mandou para o chão, calcando-o. A paragem ia enchendo à medida que o tempo passava e lá ao fundo, viu-se o autocarro chegar. Vinha já cheio e ainda mais ficou depois de toda aquela gente entrar. Se ele já não gostava de autocarros, nos dias de frio passava a odiá-los. Passava mais de 20 minutos em pé, espremido contra uns quantos estranhos que não sabiam distinguir o chão dos pés das pessoas. Não conseguia esperar pelo dia em que pudesse finalmente tirar a carta. Quando finalmente chegou ao seu destino, já estava atrasado, mas nem por isso acelerou o passo para alcançar o portão da escola. Seguiu pelo passeio, atravessou o pátio e subiu as escadas. Ao abrir a porta já estavam a dar matéria, mas não se importou.
- Já tem falta - disse-lhe o professor, ao vê-lo entrar.
Ele não lhe deu nenhuma resposta. Foi sentar-se na única mesa livre, ao fundo da sala e ao lado da janela e tirou os cadernos e livros. Ignorou tudo o resto à sua volta e pôs-se a contemplar o exterior. Adorava ver as folhas a voarem com o vento e os ramos das árvores a agitarem-se com o mesmo. Adorava ver as cores castanhas misturarem-se com o verde. A bem dizer, adorava o Outono mais do que adorava qualquer outra estação do ano. A sua calma, a sua serenidade. Traziam-lhe boas memórias. Daquelas que ele queria esquecer mas ao mesmo tempo recordar. Daquelas que ele nem sabia se eram memórias de todo. Talvez não o fossem. Talvez fossem fragmentos da sua imaginação. Eram, porém, bem melhores do que aquelas que ele realmente tinha. 
O toque da campainha despertou-o desta nostalgia. Arrumou as suas coisas e saiu. Foi ao cacifo buscar os livros para a próxima hora e já os tinha quando uma multidão encheu o espaço. Os alunos passavam, a rir, abraçados uns aos outros, a falarem sobre tudo e mais alguma coisa que pudesse ser traduzido em palavras. Irritado por toda aquela confusão de vozes e gritos, saiu dali e acabou por se ir sentar encostado à parede, o mais distante possível de toda a  agitação. Tirou o ipod da mala e pôs-se a ouvir música até tocar. Sentiu-se mais calmo e acabou por esquecer todo aquele alvoroço. Deixou-se levar pela melodia e e enroscou-se em si mesmo por causa do frio que se fazia sentir naquela manhã. Não que lhe fizesse impressão. Antes os frio do que o calor, era o que pensava. 
Estava mais cansado do que aquilo que queria admitir e, aos poucos, as pálpebras começaram a pesar-lhe. Foi fechando os olhos, a mente esvaziou-se-lhe e antes de notar, já tinha adormecido contra a parede. Acordou, duas horas mais tarde, quando o toque ressoou pela escola. Tinha faltado a duas aulas e o ipod tinha ficado sem bateria. Que se lixe. Levantou-se, pegou na mala e dirigiu-se para a saída da escola. Não vale a pena ir à próxima hora. 
Tirou um cigarro, acendeu-o e encostou-se à paragem, à espera que o autocarro chegasse. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O mar é fiel - fim

Estou parada na água, que me chega até à cintura e me envolve num abraço gelado, porém, o meu corpo pouco se parece importar com o frio que lentamente se apodera de mim. 
Porque estou aqui? Não sei. Como vim aqui parar? Não me recordo. Também não importa. Na verdade, agora nada importa. Como, porquê, quando. São interrogações para as quais não existe espaço na minha cabeça. Agora, só um facto toma controlo da minha mente. Só uma verdade me move e só uma realidade me consome.
As ondas rebentam contra mim, colmando a camisola ao meu corpo, algo que dantes me daria estremecer e despi-la, mas que agora nem um simples olhar ganha. O mar está agitado, com ondas enormes e correntes fortes, como que numa revolta pelo que aconteceu. Entendo-o. Também eu, mais cedo, tinha estado assim. Mas agora não. Agora estou calma, consciente do que farei e de como o farei. Viro costas àquele frenesim de movimentos e sigo caminho para as rochas. Alguns surfistas aventuram-se mar a dentro, sem medo algum do tamanho que as ondas assumem. Ao vê-los, algumas lembranças assombram-me enquanto ando. Eu, sentada nesta mesma praia, a ver o Frederico deitado na prancha, para , momentos depois se levantar e deslizar na onda. Ou a fugir dos seus braços frios e molhados, quando ele decidia perseguir-me pelo areal fora. Lembro-me de como me sentia orgulhosa e feliz por poder dizer que aquele rapaz era o meu rapaz. Agora, apenas me traz lágrimas aos olhos, lágrimas essas que me esforço por não deixar cair. 
Chego aos rochedos e, inspirando profundamente, começo a trepar por ali acima. Ignoro a entrada da gruta, ignoro o que ela me diz e as memórias que me proporciona. Continuo a subir, cada vez mais alto, até chegar ao topo. Aqui, o vento tem maior intensidade, quase fazendo o meu corpo franzino perder o equilíbrio. Já aqui tinha estado, várias vezes com o Frederico, e nessas alturas, ele agarrava-me com força, como se tivesse medo que eu caísse. No entanto, neste momentos e daqui em diante, o abraço do Frederico não pode impedir que eu caia. Porque ele não está aqui. Porque ele não voltará a estar. 
Continuo a andar até chegar à beira do rochedo. Daqui consigo ver o mar debaixo de mim, contra as pedras, como um chicote movido pela fúria. Um chuva miudinha começa a cair e eu olho em frente. Não há luta de pensamentos ou sufoco de lágrimas. Apenas há imagens, a correm de um lado para o outro, o corpo do Frederico naquela maca, o dia em que o conheci, o funeral dele, a nossa primeira noite juntos, a dor de o perder, o amor incondicional. com estes pensamentos, dou alguns passos até que sinto apenas o ar debaixo dos pés.. E caio, para ir ter com o meu amor.

domingo, 30 de junho de 2013

Num mundo à parte

Num mundo à parte, nós andamos. Vagueamos pelas sombras da noite, como quem não tem lugar para onde ir. Caminhamos pelas estradas abandonadas na esperança vã de encontrar alguém. Com passos em falso, percorremos as ruas, escondidos do sol do dia, tropeçamos nos rebordos do passeio e caímos no alcatrão degradado, juntando mais feridas à coleção que já temos. As roupas já não são roupas, os sapatos já não são sapatos. O calor deixou de fazer impressão, a sede deixou de se notar e já nem a fome nos incomoda. A chuva vem, como que tímida, sem nos querer chatear. Porém, quando entende que já nem isso nos perturba, começa cair com toda a força, formando poças pelo chão, ensopando-nos o cabelo, e colando-nos os tecidos à pele. Sentamo-nos, algures no lugar abrigado, sentido algumas das pingas que atravessaram as pequenas falhas no que em tempos foi um teto. Encostados contra a parede, enrolamo-nos numa bola humana, assaltados por pensamentos que não nos dão descanso. O barulho da água contra o que quer que lhe apareça no caminho desvanece-se, as gotas que persistem em mater-nos o corpo molhado desaparecem e agora não há nada mais do que um vazio. Um espaço oco, desprovido de qualquer tipo de calor. Com a mente entorpecida, deixamo-nos embalar pelo silêncio que nos rodeia. 
Num mundo à parte, nós perdemo-nos. Somos levados pelo meio das pedras, dos arbustos que nos arranham as pernas, das árvores que nos dificultam o caminho, até chegarmos ao lugar onde vento nos bate contra o tronco, emaranhando o cabelo no monte do nós. Aproximamo-nos do cheiro a maresia, que nos envolve num abraço de conforto, como quem pede para ir com ele. Respiramos fundo, deixando os pulmões sentirem aquele ar puro, livre de toxinas ou qualquer outra substância que nos envenena o corpo. Ali, quase que sorrimos, com o sossego que nos rodeia. O silêncio que se ouve. Não era o típico silêncio que nos indica que não há nada, mas sim aquele que nos mostra que irá haver paz, ou talvez, apenas calma. Do tipo de silêncio que nos cativa a querer mais. Com uma marcha segura, percorremos a distância que sobrou. Sentimos o ar debaixo dos pés e, momentos depois, a harmonia do silêncio. 

sábado, 1 de junho de 2013

O mar é fiel 24*

Não sei onde estás. À dias que não te vejo. À dias que não cá estás. Onde foste Frederico? E porquê é que não voltas? Já passaram 9 dias desde que vi aquele recado em cima da mesa. 
Desculpa, mas tenho de ir, não sei para onde, mas tenho. Não sei quando volto, mas prometo que o faço. Promete-me que não fazes nenhuma loucura enquanto estou fora. Amo-te.
- Volta - grito, enquanto mando com a mesa da sala ao chão.
Não é justo, não é. Durante muito tempo pensei não aguentar mas ele pediu-me para tentar e eu fi-lo. Por ele, eu tentei. Dei o meu melhor para mudar, para o fazer ficar e mesmo assim ele decidiu não ficar.
Promete-me que não fazes nenhuma loucura. Como é que és capaz de me pedir para não fazer nenhuma loucura quando tu próprio fizeste uma destas? E se te preocupas tanto, porque é não ficaste para garantires que eu ficava bem? 
Não consigo entender, por mais que tente, o porquê dele fazer uma coisa destas. Tento acalmar-me e pensar com clareza mas torna-se difícil fazê-lo. Sento-me no chão e começo a inspirar fundo. Lembro-me dos últimos dias antes dele se ir embora. Andava estranho, taciturno. Para mim, era óbvio que algo se passava, conhecia-o há tempo demais para não notar que algo não estava bem. Porém, por mais que tentasse, não consegui descobrir o que era. E ainda agora, tento entender o que lhe ia na cabeça, no entanto o resultado é nulo. Perguntei-lhe, diversas vezes, o que se passava, mas ele limitava-se a dizer que estava tudo bem, que nada se passava. Era claro que mentia, mas quando ele se fechava numa concha ninguém lhe conseguia arrancar a verdade. Nem mesmo eu.
No dia em que cheguei a casa e dei de caras com aquele papel, pensei que ele voltasse à noite. Por isso, sentei-me na cama e esperei. 8 da noite. 9 da noite. 10 da noite. As horas voavam e nada. Parte de mim sabia que ele não iria voltar, não naquela noite, mas não consegui sair dali. Quando dei por mim, eram 7 da manhã e o sol já estava a nascer. Tomei banho, arranjei-me, e fui para a faculdade, convicta que quando voltasse, ele estaria à minha espera. Mas não estava. Não nesse dia, não no dia seguinte, nem no outro. Nem no outro. Mantive-me calma. Ele disse que voltava e eu acreditei. Eu acredito que ele vai voltar. Mas quando?
Decidi que tinha de entender o que fazer. Há uns meses, uma tempestade deu cabo da casa onde eu e o Frederico vivíamos, pelo que tivemos de nos mudar para a minha casa. A ideia não me agradou particularmente, mas para ele, foi-lhe indiferente. Desde que estejamos juntos, Lua, por mim pode ser. O problema é que agora já não estamos juntos. E a dúvida de quando voltaremos a estar apodera-se de mim. Todos os dias é o mesmo. Levanto-me, vou para as aulas, fico na esperança vã que ele volte e depois, ao voltar para casa, caio na realidade que ele não está aqui. 
Estou no fim do terceiro ano de faculdade. No verão, fazemos 4 anos de namoro. Dentro de dois meses, fazemos 4 anos de namoro. Ou faríamos. será que por esse altura ele estará de volta? Não sei. Já não sei nada. Por enquanto, limito-me a acreditar que um dia chegarei a casa e ele estará à minha espera, tal como dantes. Limito-me a acreditar que um dia acordarei com ele a chamar por mim, como costumava fazer. Por enquanto, limito-me a existir, agarrando com todas as minhas forças as memórias que construímos. Porque neste momento, é a única coisa que me impede de afundar.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Nada em lugar algum

Esta floresta é tão negra. Onde vou? Qual é o caminho? Olho em volta, uma, duas, três vezes, e mais umas quantas. Não sei, não o vejo. Tento perscrutar a escuridão, encontrar algo que me indique onde estou, para onde posso ir. Não encontro. Que sítio é este? Melhor, como vim aqui parar? Não me lembro, não sei de onde vim, não sei que estrada me trouxe até aqui, onde estou, quero saber, preciso de saber. Ando. Dou voltas e voltas, em busca de uma saída. O ar pesa. Corrói-me por dentro. Os pulmões imploram por alivio, mas ele não vem. É como se um veneno pairasse à minha volta, cada vez mais pesado, cada vez mais tóxico. Tropeço, não sei onde ou como, o chão parecia limpo, mas até ele mudou. Deixo-me ficar estendida no chão, sinto os músculos a pedir descanso, estão cansados, quando foi a última vez que parei, não me lembro, mais uma vez, não me consigo recordar. O sol, onde está? Ele tem que nascer, todos os dias, ele nasce, porque é que ainda não apareceu, porque é que não o consigo ver? Deito-me de costas, consigo olhar. Olhar? Olhar para onde? Não há nada para ver. Não há nada distinguir. Estico a mão e entendo que nem isso consigo observar. Tento olhar para mim mesma, mas é como se não estivesse aqui. O que se passa, o que é isto? O medo apodera-se de mim. Que sítio é este, que terra é esta, onde foi que vim parar, como? Levanto-me, meio atabalhoadamente. Tento dar passos, mas eles são instáveis, a pernas tremem, de frio, de medo? Não sei, não consigo distinguir, talvez dos dois. A minha cabeça anda à roda, não consigo pensar, ou talvez consiga, em excesso. Sinto um arbusto à minha frente e depois, o chão. Espinhos. Espinhos por todo o meu corpo. Nas pernas, nos braços, na barriga. Com os dedos trémulos, começo a retirá-los, um por um. Cada vez dói mais, cada um mais fundo do que o outro. Alguns entraram debaixo da carne, já não saem. Respiro fundo, olho em frente, preciso de sair daqui, por onde, preciso de um caminho. Porém, por mais que tente, não consigo, por mais que tente, não há nada que me leve a sair daqui, nem sei onde é que o aqui é. Sinto a réstia de força que tinha a ir-se embora, sinto o desespero a tomar conta de mim. Grito. Não sei porquê, mas grito. Peço ajuda. Chamo por alguém. Berro com a força que resta dos meus pulmões. Este ar, está pior. Não me permite respirar. Quebro. Começo a chorar e apercebo-me que nem as minhas lágrimas sinto. Estarei mesmo a chorar, ou será o cansaço a levar a sua avante? Não pode ser. Pode? O que é isto, o que é que me está a acontecer? Tirem-me daqui. Levem-me daqui. Eu só quero sair daqui. A dor causada pelos espinhos, não está lá. Passo os dedos pelas pernas, mas não as sinto. Não sinto nada. Sou real? Isto é real? Ou é só algo que a minha mente criou? Eu não sei. Eu não sei quanto tempo passou, quanto tempo perdi. Não sei quem sou. Quem sou eu? O que estou a fazer aqui? O que aconteceu? Tantas perguntas, a minha cabeça recusa-se a mais. Deito-me no chão sujo e fecho os olhos. Não há diferença entre tê-los abertos ou fechados. Não vejo nada, em ambos os casos, mas não me importo. Deixo-me ficar. Aos poucos, o meu corpo acalma-se. O ar continua pesado, os pulmões, cansados, mas parecem ter baixado a guarda, parecem ter desistido desta luta desnecessária. A mente vai-se esvaziando, os pensamentos vão saindo. E, finalmente, encontrei a saída.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Do tudo ao nada

Como as folhas de outono que caiem.
Como as folhas de primavera que crescem. 
Como o riacho que seca no verão. 
Como o riacho que se enchesse no inverno. 
Como a chama que arde
Como a chama que se extingue
Como as ondas que cessam na areia. 
Como as ondas que se formam no mar. 
Como o Sol que se põe todas as tardes. 
Como o Sol que nasce todas as manhãs. 
Como a linha que tem fim. 
Como a linha que tem inicio.
Como a Lua se esconde todos os dias. 
Como a Lua que se mostra todas as noites. 
Como as flores que morrem no frio. 
Ou como as flores que nascem no calor. 
Como as nuvens que se dissipam. 
Como as nuvens que se formam. 
Como a luz que se apaga. 
Como a luz que se acende. 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Um pequeno nada

Não sei quantos textos já comecei sem ver inicio às palavras. Quantos textos tentei formar, juntando frases que no fim, não se ligavam entre si. Perdi a conta aos rascunhos no meu computador, às folhas que amachuquei, aos textos que ficaram a meio (ou nem tanto). Ultimamente, nada se forma. Nada se constrói. Posso dizer, que não me lembro da última vez que me senti assim. Sem inspiração, sem criatividade, sem forma de conectar as palavras entre si. Posso dizer, a sensação não me agrada. E a pior coisa é quando sei que preciso de desabafar, mas não consigo. Não consigo deitar cá para fora tudo o que sinto, tudo o que penso, tudo o que se passa. Pela primeira vez em tempos, não consigo transferir os meus pensamentos para o papel, não consigo falar com o meu melhor amigo. Porém, eu preciso. Preciso da sua ajuda o mais depressa possível, preciso que ele fale comigo, que ele me diga o que necessito saber, que ele me dê as respostas que procuro, mas como poderá ele dizer-me se nem as perguntas sei fazer? Para mim, este é pior estado de espírito. Aquele em que queremos dizer tudo, queremos gritar ao mundo o que nos vai pela mente, queremos mostrar as nossas reflexões, mas eles recusam-se a sair. Recusam-se a ser expostas, assim, desta forma. E por isso fecham-se cá dentro. Trancam-se a si mesmas. Elas não notam. Não percebem que me confundem a cabeça, cada uma a quer ganhar, a querer levar a sua avante, cada uma quer ser a escolhida, elas não entendem o que isso me causa, o que isso provoca na minha cabeça, elas são mas fortes, e de tanto querem sobressair, acabam por acabar com a pouca sanidade que resta. Não consigo, é uma luta permanente, entre o que oiço, o que queria ouvir, o que vejo, o que queria ver, o que sinto, o que queria sentir. É uma constante de guerra que não tem fim, uma constante de batalhas sem vitória. Porque não há ninguém para ganhar. Sou só eu. Sou eu contra mim mesma, ninguém mais. Apenas eu. No fim, apenas há um corpo cansado. Uma alma cansada. Cansada de lutar, cansada de não saber quem é, cansada de se arrastar até este ponto. Apenas uma alma cansada. Nada mais.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Tenho 16 anos e (...)

Já passou quase um ano. Um ano desde o acidente. Um ano em hospitais, fisioterapeutas, operações, exames e medo. Eu sei que ele o tem. Mesmo passado tanto tempo afastados, continua a conhecê-lo melhor do que ninguém. Ele mostra-se forte, mas eu sei que está assusta. A probabilidade de não voltar a andar, de não voltar a correr, de perder a sua autonomia, assustam-no de morte. E por mais que ele se esforce por escondê-lo, não consegue. Pelo menos, não de mim. 
Não arrisco deixá-lo sozinho. Mal a escola acaba, apanho o comboio e vou ter com ele. Perdemos tanto tempo, não quero perdê-lo de novo. Não agora. A pouco e pouco vamos recuperando o que tínhamos. Descobri que ele faz parte da equipa de basquetebol da escola, que é aluno de notas altas e outras coisas banais. De resto, nada tinha mudado. A sua comida favorita, a sua bebida predilecta, o gosto musical, até a forma de se vestir continua a mesma. Ele podia ter crescido, e muito, mas o seu interior continua o mesmo. Brincalhão, bom ouvinte. Nada tinha mudado. 
- Olivia?
- Sim? - estamos em casa dele; esta sim, tinha mudado e muito desde a última vez que aqui estive.
- E.. namorados? Houve algum?
A maneira como ele cora a fazer esta pergunta faz-me a mim corar, apesar de nunca ter havido nada disso.
- Não, nunca.
- A sério? - ele parece surpreendido.
- Sim. E tu?
- Uma ou outra, nada demais.
O meu coração sentiu um baque e depois um alivio. Nada demais.
- Se eu deixar de andar..
- Sim?
- Vais-te embora?
Aquilo sim, surpreende-me.
- Porque é que perguntas isso?
- Ninguém gosta de namorar com um inválido.
- Isso depende de quem é o 'inválido'.
Ganho a coragem que preciso. Aproximo-me dele, até os nossos lábios se tocarem e ele retribui o beijo. Por isto, valeu a pena esperar. 

Fim.

domingo, 3 de março de 2013

O mar é fiel 23*

Parte de mim acredita que, se algum dia conseguisse abrir todo o meu coração para lho mostrar, ele iria ficar abismado. Abismado com o tamanho do sentimento que carrego comigo, com a sua intensidade. Até a mim, por vezes, assusta. Gostava de lho poder mostrar. Como se acende um fogo, quando ele me beija explosivamente, para depois acalmar, fazendo o meu coração parar. Se ele soubesse..
- Assim não consigo estudar - sussurro, por entre beijos.
- Distraio-te? 
Imenso. 
Ele afasta-se, ficando a uma mesa de trabalho de distância.
- Se chumbar nos exames, a culpa é tua. 
- Depois fico de castigo, é?
- Ficas - olho para ele e ele mostra-se amuado - vais fazer birra, é? 
- Vou. 
- Está bem.
Fica um silêncio entre nós, enquanto prossigo os estudo. A faculdade é esgotante e, depois de tudo o que se tinha passado, por vezes é tentadora. Era difícil resistir a coisas a que tinha que dizer 'não'. Por nós, estou a fazer um esforço. E sei que ele também. Quando há alguma festa que eu quero mesmo ir, ele não faz finca pé. Em troca, tinha de ter juízo. Era justo. Por vezes chego um pouco menos sóbria. Quando assim o é, ele lá me guia até adormecer e no dia seguinte, tem a paciência de um santo contra o meu mau-humor. Depois disso, tento recompensá-lo. Apesar de tudo, estamos bem, e poder dizer isto, é o que me deixa mais feliz.
- Tens fome? - pergunta, enchendo a sala com algo mais do que o silêncio.
- Por acaso tenho - olho para o relógio: 5h48; já estou a estudar à imenso tempo.
- Vou preparar um mega lanche então - levanta-se e dá-me um beijo no alto da cabeça ao passar por mim; tenho de admitir que ele tem paciência: fica horas a ver-me estudar, sem fazer qualquer barulho.
Já basta de estudo, por hoje. Fecho os cadernos e livros e arrumo os lápis e canetas no estojo. Levanto-me e enquanto me espreguiço, olho ao meu redor. A divisão está completamente desarrumada. Apanho a roupa do chão e ponho-a no cesto da roupa suja, faço a cama, arrumo os sapatos debaixo desta e a roupa limpa no armário. Dou um jeito às mesinhas de cabeceira e ao móvel da televisão e ajeito o tapete. Agora, o quarto/sala parece outro. Vou para a cozinha. O Frederico está de costas, voltado para a bancada, e eu abraço-o por trás. 
- Bastou sair de lá, para vires atrás de mim - graceja.
- Convencido - fecho os olhos e inspiro o seu cheiro - que estás a fazer?
- Tostas - ele vira-se e agarra-me pela cintura - e chocolate quente.
- Hmm..
Beijo-o e ele retribui o beijo. O problema de começar, é que é difícil - muito difícil - parar. É o bip da tostadeira que nos pára. Preparamos um tabuleiro com as tostas, o chocolate quente e compota e vamos  para cima da cama. Barro uma tosta com o doce de morango e trinco-a, com noção da fome que tinha. Comemos por entre risos e quando fico com os lábios sujos do chocolate quente, ele limpa-os com um beijo. Ao acabarmos, lavamos a arrumamos a loiça.
- Vamos dar um passeio - sugere.
- A esta hora? Está frio - o que é bem verdade, se a casa está fria, a rua deve estar ainda pior.
- Sim, vá lá, vamos.
- Mas está frio - ele faz beicinho o que torna difícil resistir-lhe - está bem, vamos.
- Yeeees - sufoca-me num abraço. Num instante visto umas leggins limpas, um camisola de gola alta e outra de lã, juntamente com umas botas. Ele veste-se com umas calças de ganga, uma camisola de malha e um casaco. Pego numa mala, ponho lá dentro as chaves, carteira e telemóvel e saímos. Somos logo atacados pelo are gelado e eu encosto-me mais ao Frederico, para conservar o que resta do meu calor. Caminhamos à beira mar e passamos por várias pescadores acabados de vir do mar, bem como algumas crianças com os pais, prontos a comprar peixe fresco.
- Ele está-se a mexer! - grita um rapazinho no colo do pai, a olhar para dentro do barco.
Sorrio, ao lembrar-me de como eu ficava assim quando era mais pequena e ia ali com o meu pai. Eu adorava a sensação. 
Continuamos a andar, até chegarmos à gruta. Há já muito tempo que não entrávamos ali.
- Queres ir lá dentro? - pergunto-
- Não me apetece muito - confessa - e a ti?
- Também não - abraço-o e observo o mar, quando tenho um ideia - vamos nadar.
- Estás louca.
Afasto-me dele e começo a tirar as camisolas.
- Por favor, diz-me que não estás a falar a sério - descalço-me e começo a tirar as leggins - ainda à bocado estavas gelado, Lua.
- Mas agora já não estou. Vens? 
- Não, está frio e a água deve estar ainda pior.
- Fraquinho - dirijo-me para o mar e começo a sentir as gotas nos pés; ainda tenho que andar um bom bocado antes de conseguir mergulhar, mas quando consigo, atiro-me para dento de água. Adoro esta sensação: não tenho frio, não perco o fôlego, não tenho medo. Estou onde preciso de estar, quando preciso de estar. 
- Lá vai bomba- oiço, quando venho à tona; oiço um splash e pouco depois vejo a cabeça do Frederico a emergir - e agora, que é o fraco? 
- Tu, és - provoco.
Ele agarra-me, encostando-me a si. Vejo-o morder o lábio e isso tem o poder de me arrepiar mais do que o frio desta tarde.
- És louca, sabes? 
- Ouvi dizer.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O mar é fiel 22*

Um arrepio percorre-me a espinha e as pálpebras teimam em ficar fechadas. Sinto um odor a chegar-me às narinas e reconheço o que é: chá. Não me lembro da última vez que bebi chá. Para ser honesta, não me lembro de nada. Sinto o corpo a arder, mas ao mesmo tempo tenho frio. Tento mexer-me, mas uma mão impede-me. 
- Shh, tem calma.
A princípio, não reconheço a voz. Esta, porém, desperta algo em mim, algo que não consigo entender o que é. Tenho um ataque de tosse, que me faz sentar e perder a respiração. Sinto alguém a ajudar-me quando perco as forças para me manter sentada. Quando consigo acalmar, estou a arfar. Tento falar, mas a voz falha-me e as palavras não conseguem formar frases.
- Sede.. - respiro fundo - água.. por favor.
A cabeça pesa-me e lateja e sinto-me cada vez mais a arder. Afasto os lençóis e cobertores e sinto a ar frio na pele. 
- Está aqui. Calma, para não te engasgares - alguém põe-me um copo nas mãos, e ajuda-me a segurá-lo. Levo-os aos lábios e bebo tudo de uma só vez. Sabe bem. É como se não bebesse água à anos e o meu corpo pede mais. 
- Queres mais? - pergunta a voz que, agora, consigo reconhecer.
- Sim..
- Já venho então.
Encosto-me melhor às almofadas, de forma a ficar sentada. Tento reconhecer, a pouco e pouco, o sítio onde estou. Lentamente, as memórias antigas ajudam-me e consigo entender o espaço à minha volta. Consigo reconhecer a cama, a televisão, os móveis, as paredes, os quartos. Estás em casa dele. O que se passou? Não consigo lembrar-me de nada desde o momento em que fiquei à porta dele. Nem sei quanto tempo lá fiquei. 
Vejo-o a entrar na divisão, com o rosto cansado, mas satisfeito. Frederico. O meu coração dá um pulo e tenho noção do tempo que fazia desde a última vez que o vi. Tinham passado tantos dias que doía, fisicamente.
- Está aqui. 
- Obrigada - bebo tudo rapidamente, mas desta vez já não preciso de ajuda. Dou-lhe o copo e ele mete-o na mesinha de cabeceira. Olho para ele e ele olha para mim, mas não diz nada. Tento organizar o pensamento, e as perguntas que se atropelam por ser as primeiras a sair. Algo me diz que não estou pronta para isto, mas já não aguento mais.
- Estás com calor? - para minha surpresa, ele é o primeiro a falar; chega-se a mim e mete-me a mão na testa  e depois os lábios - estás menos quente, muito menos. 
Realmente, tenho calor. A voz insiste em não vir, pelo que aceno afirmativamente, apenas. 
- Vou-te buscar algo mais fresco - e vejo-o dirigir-se a uma mala no chão da sala/quarto. Vou tirando as camisolas, quatro ao todo. Tinha estado assim tanto frio? Tirei as calças do pijama e o ar frio arrepiou-me a pele. Mais perguntas formam-se na minha cabeça, para as quais não tenho resposta. Ele volta com roupas minhas e mais perguntar vêm. Tenho uma tontura quando começo a vestir as leggins e ele segura-me quando me desequilibro. Visto o top, ponho o casaco e ele fecha-mo. Depois dá um jeito rápido na cama e ajuda-me a sentar-me, desta vez por cima dos lençóis e cobertores. Enrolo me numa manta que está ali e ele senta-se na cadeira. Desta vez, sou eu a primeira a falar.
- O que se passou?
- Ficaste doente. Eu cheguei a casa, tinha saído para ir fazer um trabalho, e tu estavas ali enrolada, completamente gelada. Trouxe-te para dentro, não sabia o que fazer por isso liguei para tua casa com esperança que estivesse lá a Dona Matilde. Felizmente, estava. Contei-lhe o que se tinha passado e ela veio cá ter, com roupas tuas. Ela disse-me o que fazer e tem passado por cá todos os dias.
- Já veio hoje?
- Já - isto desaponta-em; gostava de poder falar com ela - já é de noite, Lua.
Instala-se um silêncio de novo e passado um pouco, oiço-lhe a voz magoada:
- O que te passou pela cabeça? Podias ter morrido.
Baixo a cabeço e odeio-me por isto: por ser fraca ao ponto de não o conseguir enfrentar.
- Eu estava à tua espera. Queria falar contigo.. - as lágrimas impedem-me de continuar e dizer tudo o que sinto - onde é que estavas?
Olha para ele. Faço-o. Olho-o nos olhos e desta vez é ele quem não me encara.
- Já te disse, saí para um trabalho. Levou alguns dias e era longe.
- Eu mandei-te mensagens. Liguei-te inúmeras vezes. Podias ter-me dito que ias para fora.
- Eu não queria..
- Falar comigo? - ele olha para mim e desta vez, nenhum de nós desvia o olhar; também ele já tem lágrimas nos olhos - não faz mal, eu mereci. Eu magoei-te e isso tu não merecias.
Por momentos parece que ele vai falar, mas algo impede-o. 
- Quanto tempo estive doente? 
- Quase um mês - o coração cai-me aos pés; um mês. Tanto tempo. Ele tinha razão, fora uma loucura. 
Reúno toda a coragem que me resta e falo.
- Eu não queria ter feito o que fiz. Eu não queria ter-te mentido, não queria evitar-te, não queria ter-me tornado numa pessoa diferente. A verdade é que eu nem notei no que fiz. Não reparei que te estava a afastar, que te estava a perder. Simplesmente.. 
- Simplesmente fizeste o que querias? - o tom dele magoa-me mais ainda; não é um tom de censura, mas sim de mágoa, de desapontamento. Um tom que eu odiava.
- Por favor, dá-me mais uma hipótese. Por favor. Eu mudo de novo. Eu volto a ser a rapariga que conheceste, eu volto a ser quem era. Por favor, Frederico, eu amo-te. Eu não te quero magoar, eu não quero que estejamos assim, eu quero que estejas bem, que nós estejamos bem. Desculpa. Desculpa, desculpa, desculpa, desculpa.
Ele levanta-se e senta-se ao meu lado, abraçando-me. Como eu tinha saudades disto. Como tinha saudades de estar com ele, de o ter assim, perto de mim, comigo, só nós. Deus, eu amo-o tanto.
- Vamos tentar outra vez, Lua. Eu amo-te e não quero que isto acabe assim. Vai correr bem, desta vez. Todas as relações vão abaixo de vez em quando, desta foi a nossa vez. Acontece. Promete-me que vais tentar, tal como eu prometo que vou tentar. 
- Prometo, eu prometo, que vou dar o meu melhor e por todo o que tenho para que nós resultemos. Eu prometo. 
Tiraram-me 5000 quilos dos ombros. Quase que tenho vontade de cantar, de dançar, de gritar. Eu não o perdi, eu não o perdi. Sinto-me tão feliz. 
Ele beija-me e eu beijo-o de volta. Eu disse-te.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O mar é fiel 21*

Já tinha passado quase duas semanas desde a última vez que tinha falado com o Frederico. Já tinha perdido a conta às mensagens que lhe tinha enviado e às chamadas que ele me tinha rejeitado. Vai ter com ele. Mas eu não consigo. Sei que ele está magoado comigo, e com razão. Eu errei e muito. Se for a casa dele, muito provavelmente vou ficar à porta, pois ele não me quererá ver. Que tens a perder? Ele já não fala contigo, não há mais nada que possa fazer. Mas eu tenho medo. Medo que ele me rejeite de novo, que me feche a porta na cara ou pior que isso, que nem a abra. Não quero isso. Quero falar com ele, dizer-lhe que vou mudar, que vou voltar a ser a rapariga que ele conheceu naquele verão. Quero dizer-lhe que o amo e que por ele eu sei que consigo. Preciso de lhe dizer. 
Estou prestes a abrir um buraco no chão. Vou ou não vou? Vou ou não vou? Vou ou não vou? Ando de um lado para o outro no quarto, perdida em pensamentos e questões. Vai, é melhor ires, saber bem que sim. Se for, ele pode não querer falar comigo, pode-me rejeitar, mas ao menos fica a saber que eu me preocupo e que tentei. Se não for, ele vai ficar a pensar que não me preocupo com a nossa relação, que para mim isso não é importante. O que não é verdade. Decido-me a ir. Visto-me à pressa, pego na mala e saio de casa. As nuvens tapam o sol e ameaçam chuva. Acelero o passo quando começo a sentir pingos na cara e no cabelo. Quando chego a casa dele, há estou toda ensopada, com a roupa colada ao corpo e cheia de arrepios. Ao bater à porta, noto que as mãos me treme e algo que me diz que não é do frio. Porque é que eu vim? Ele não consegue olhar para mim, nem sequer atender uma chamada ou responder-me às mensagens. Jamais aceitaria falar comigo. Ele tinha deixado bem claro que tinha acabado. Bato mais uma vez. Será que ele está em casa? Pode se ter ido embora.. Desvio esta ideia da cabeça. Ele não podia ter-se ido embora assim, ele não o faria. Bato mais uma vez. E outra. E outra. As lágrimas já me escorrem pela cara abaixo e acabo por deixar cair a mala no chão. Ele deixou bem claro que tinha acabado e eu fui burra ao achar que o poderia ter de volta. Tem calma, pensa. Não consigo. Não consigo pensar, não consigo raciocinar, simplesmente não dá. Bato outra vez na porta, e quando a mão começa a deitar sangue por raspar na madeira, acabo por desistir. As pernas tremem-me tanto, que acabo por cair ao tentar sair dali. Não podes desistir! E faço o quê? Não sei, pensa! Ele não podia ter ido embora. Por mais magoado que estivesse, ele não o faria, não sem me dizer alguma coisa. Ele tem que voltar, eu sei que sim. Mostra-lhe que te importas. Óbvio que me importo. Ele é tudo o que me resta, corrói-me por dentro não poder estar com ele, não suporto a ideia de o ver assim, de nos ver assim. Eu preciso dele, já não tenho mais nada. Ele tem de voltar. Mais tarde ou mais cedo. E quando voltar, eu vou estar ali. Ali mesmo, à espera dele.
Limpo as lágrimas e encosto-me à parede, puxando a mala para ao pé de mim. Quando ele voltar, nós vamos voltar. Não importa o tempo que demore, eu estarei ali à espera dele, ali para lhe dizer tudo o que sinto e penso. Se depois disso, ele quiser acabar, então eu respeito. Podia ter acabado para ele, mas não para mim. 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O mar é fiel 20*

- Lua, podes abrir a porta?
Arrasto-me pelas escadas abaixo e deixo-o entrar, com a luz a encadear-me a visão. As minhas pernas falham e tenho de me agarrar ao Frederico para não cair.
- O que raio se passa contigo?
- A festa foi demais.. - murmuro enquanto me encosto a ele.
- Lua, precisamos de falar.
Por muito pouco funcional que a minha cabeça esteja neste momento, apercebo-me no tom de voz dele e tento manter-me focada.
- O que se passa?
- O que se passa? Já viste bem o teu jardim?
Olho para ele e vejo-lhe o ar meio zangado meio preocupado pelo que me dirijo lá fora, com a mão a proteger os olhos. Levo algum tempo até me adaptar à luz, mas quando consigo, entendo o que ele quer dizer. O relvado é uma mistura de garrafas de bebida e cigarros por todo o lado. A noite de ontem tinha sido demais.
- Agora deste para fumar foi?
- O quê? Não - é mentira, tu sabes.
Ele nem responde. Vira-me costas, entra em casa e sobe pelas escadas a cima. Faço um esforço para o acompanhar e quando chego ao meu quarto, ele está a revirar-me as gavetas, as malas, tudo. 
- O que é que pensas que estás a fazer? Pára com isso!
- Se me vais mentir, então tenho de arranjar provas.
- Pára com isso Frederico, não tens direito nenhum de mexer nas minhas coisas. 
Ele ignora-me e eu acabo por perder as forças que ainda tenho. Encosto-me à parede, a tremer por todos os lado. Ele vai descobrir. 
Subitamente, ele pára. Um arrepio percorre-me a espinha e eu sei o que vai acontecer a seguir. O estômago revolve-se. 
- Nunca pensei que tivesses de me mentir. 
- Eu..
Ele vira-se de repente, tão depressa que me assusta.
- Tu o quê? Tu escondeste-me isto. Tu mentiste-me quando te fiz uma pergunta bem direta. Tu mudaste, eu já não te conheço, já não vejo a pessoa que conhecia há um ano e meio. Já não és a mesma.
- Sou, sou sim, deixa-me explicar, por favor..
- Explicar o quê? Tu fumas e nunca me contaste. Pensas que sou estúpido? Sempre a comeres pastilhas, a tentares disfarçar com a desculpa 'estava ao pé de amigos'. Eu não sou burro. Mas tu fizeste de mim um. Desde quando é que isto dura?
- Desde a festa dos caloiros.. - a minha voz mal se ouve; tenho um nó tão grande na garganta e as lágrimas estão cada vez mais próximas.
- Isso foi à quase 3 meses. Tu andas-me a mentir à três meses.
- Tu é que insistis-te comigo para ir! 'Precisas de fazer amizades' foi o que tu disseste!
- Porque pensei que tu fosses crescidinha o suficiente para não te meteres nisto. Tu sais todas as noites, e de manhã estás sempre de ressaca. Sempre. 
- Estás a fazer uma tempestade num copo de água, qual é o mal do que eu tenho andando a fazer?
- Tu não entendes pois não? - oiço-lhe a voz magoada, o que me magoa a mim também - tu mentiste-me. Mentiste-me, escondeste-me coisas. Qual foi a última vez que estivemos juntos em condições? Quando é que foi a última vez que fizeste alguma esforço para estar comigo?
Dou voltas e voltas à cabeça mas é verdade que não temos um momento só nosso quase desde o verão. Era verdade, e eu sei-lo. Eu não tinha feito qualquer esforço para estar com ele, tinha-o evitado pois não queria que ele notasse nas minhas mudanças. Eu não queria.
- Deixa estar. Não vale a pena, pois não? Quer dizer, tu agora és uma universitária, tens festas, álcool, tabaco. Não precisas de mim.
- Não foi isso que eu..
- Não precisas, entendes? Não precisas de dizê-lo. Os teus atos falam por ti. 
Neste momento já ele tem lágrimas grossas a escorrerem pela cara abaixo, tal como eu.
- Frederico..
- Não vale a pena, Eu já não te conheço. Eu já não sei quem tu és. Simplesmente tornaste-te num estranha. Num desconhecida. Assim não. Não dá. Desculpa, mas não consigo. Acabou.
Ele sai do quarto e oiço a descer as escadas.
Vai atrás dele. 
Mas eu não consigo. Não consigo andar, não consigo mexer nenhum músculo, nem sequer organizar os pensamentos. Sinto-me feita de chumbo, e quando realmente entendo o que acabou de acontecer, sinto uma dor lancinante no peito, que me faz quebrar em lágrimas.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O mar é fiel 19*

Se há coisa da qual penso nunca ser capaz de me cansar, é disto. O entusiasmo de não saber onde vamos, quando vamos. De não ter o amanhã planeado, de viver sem preocupações, de acordar todos os dias num lugar diferente, com uma vista nunca igual. Nada de monótono, ou aborrecido, apenas o inesperado. O prazer de conhecer o mundo e de o deixar conhecer-me. Estou feliz. Sinto-me livre, quase com quando nadava no mar. Quase. Não ter obrigações, apenas aproveitar o dia até cair para o lado.
Com ele. Sempre com ele, com a sua presença, em espírito e corpo. Acordar ao lado dele. Por vezes ele contempla-me, noutras ainda dorme. Aí, eu fico a vê-lo. Observar o seu peito a subir e a descer, sentir o seu batimento cardíaco nos meus dedos. Com o cabelo despenteado, sem qualquer tipo de máscara ou proteção. Apenas ele. Frágil e vulnerável, tal como me tinha dado a conhecer. O meu pequeno grande sol, que me acompanhava o dia todo, que me fazia rir até doer a barriga. Que me levava às cavalitas sempre que o passeio excedia aquilo que os meus pés aguentavam. Que me dizia cinco vezes à hora 'Lua, o sol está muito forte e tu és branquíssima, tens de por mais protetor'. E que há noite, era a minha melhor almofada e aquecimento. Que por vezes, cantava até eu adormecer. Sabia bem. Preenchia-me o meu pequeno coração e fazia-me querer mais. Mais dele, mais de nós.
- Estás bem, Lua?
- Porque não haveria de estar?
- Estás muito calada - beija-me - e quieta, pensativa.
- Estava só a pensar.
- Em mim? - ele cola-se a mim e roça o nariz na minha cara; sinto-lhe a respiração que causa um ardor nas minhas bochechas e borboletas na barriga.
- Quem sabe, talvez - respondo, com a respiração entrecortada.
- Aposto que era - o seus lábios estão quase nos meus.
- Não és nada convencido deixa-te estar - digo, trocista.
- Ai é? - ele afasta-se - então hoje o convencido já não te toca mais.
- E eu com isso - olho para para o outro lado do parque, parecendo indiferente.
- És má.
Não aguento sem rir. A voz dele lembra-me os das crianças pequenas quando se zangam com o amigo, ou neste caso, a amiga. Quando olho para ele, continua amuado sem sequer mostrar um sorriso, por isso, decido inclinar-me e beijá-lo, mesmo nos lábios. Acende-se um fogo dentro de mim, que jamais quero ver extinto. Ele retorna o beijo e eu sinto uma das suas mãos na minha anca a puxar-me para si, enquanto a outra está no meu pescoço. 
- Eu sabia que não me conseguirias resistir - disse, num murmúrio - é impossível resistir-me.
O ar presunçoso dele dá-me vontade de lhe bater e de o mandá-lo para longe. Mas o problema daquilo que ele disse é que ele sabe que é verdade. Jamais lhe conseguiria resistir, por isso, continuo a beijá-lo, ignorando o resto do mundo. 
- Sabes que mais tarde ou mais cedo vamos ter de voltar, não sabes? - pergunta, quebrando o momento.
Abano a cabeça e inspiro profundamente o ar da noite. 
- Não falemos disso, por favor - peço-lhe - não quero estragar momento. Amanhã ou depois logo vemos isso. Hoje.. simplesmente deixa assim, pode ser?
- Sim pode - diz - seus desejos, são ordens.
- Que parvo - sorrio e encosto-me ao braço dele - para além que daqui a dois dias fazemos 1 ano. Acho que é mais do que motivos para esquecer tudo, ou não?
- Concordo. Onde queres ir amanhã?
- Já estou onde quero estar, Frederico - e fecho os olhos; sei que é verdade, estou precisamente onde preciso de estar.
- Neste parque de campismo reles? - parece surpreendido.
- Não, nada disso.
- Então?
Não digo nada. Com o tempo, ele entenderá.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O mar é fiel 18*

- Vamos onde Frederico?
- Não sei, onde queres ir?
- Não sei..
Porque é verdade, não sei. Nunca saí da minha cidade, mais propriamente  da minha zona, pois até a minha cidade tinha sido pouco explorada por mim. Claro que tenho sítios onde desejo ir, como os Estados Unidos ou Austrália, mas como apenas temos um carro, não poderei ir, para já, a nenhum deles. É quase verão e tenho a certeza que uns dias, ou talvez semanas, fora é o que mais preciso depois deste ano. O Frederico, supostamente, ia trabalhar este verão, como sempre, mas certo dia, apareceu lá em casa com 'uma surpresa', como ele lhe chamou. 
- Sei que não é nada demais - disse, ao olhar para o carro estacionado à minha porta, que embora não fosse recente, também não era velho - mas pensei que pudéssemos escapar ao drama que se instalou durante um bocado, e um veículo talvez fosse uma boa ajuda..
Portanto, foi uma escolha fácil de fazer: preparar as coisas e partir. Para onde, isso era mais complicado. Pelo menos, para mim.
- É simples de escolher, então. 
Ele encosta à beira da estrada, pega no mapa e sai. Eu sigo-o e vejo-o abrir a folha pelo capô do carro. 
- Fecha os olhos Lua. 
- Porquê? - o que é que ele esta a fazer? Estamos no meio de nenhures, há carroças e tratores a passar de um lado para o outro. Que é que ele tinha em mente?
- Não confias em mim? - pergunta; os olhos dele brilham tanto quanto o sol por cima de nós, está feliz, tão feliz, pelo que decido fazer-lhe a vontade. Fecho os olhos e sinto as mãos dele enquanto me dirige não sei bem para aonde. Ele segura na minha mão e passa-a pelo papel. 
- Quando quiseres paras. É para esse sitio, debaixo do teu dedo, que vamos. 
Sorrio. É uma sensação de poder, mesmo que pena. E logo depois de sentir isto, sinto-me parva. O que me faz rir ainda mais. 
- O que é que tem piada?
- Nada, nada.
- Anda lá, despacha-te - consigo ouvir-lhe o sorriso na voz - queres acampar aqui é?
- Era uma boa ideia.
Oiço-o a rir e não aguento e riu-me também.
- Lua, escolhe lá o sítio, temos de ir.
- Quem espera sempre alcança, menino Frederico.
- Eu tenho fome Lua, portanto, tens de te despachar. 
Começo a demorar mais tempo de propósito. Gosto disto, gosto da sensação de tempo, gosto da sensação de liberdade. Sinto-me bem com isso.
- Aqui. É para aqui que vamos.
Ele olha para o ponto que assinalei.
- Boa escolha, gostei.
Abro os olhos.
- Não tens de gostar, tens de obedecer - e dirijo-lhe um sorriso de orelha a orelha.
- É? É?
- Não, Frederico..
Ele manda-me ao chão e senta-se em cima de mim.
- Sai daqui, deixa-me levantar - grito-lhe por entre risos.
- Pede por favor.
- Não, eu é que mando, sai, tu
- Só quando pedires por favor e é melhor despachares-te, as formigas adoraram o teu cabelo - diz, com um ar trocista.
- Ahh, não, Frederico, olha que eu choro, sai, sai.
- Chora, chora, agora pede por favor, anda.
- Não, nunca.
- Lua..
Suspiro.
- Deixa-me levantar.
- Se..
- Se faz favor - resmungo.
- Linda menina.
- Vais pagá-las.

Não acreditarias

Se te dissesse, talvez não acreditasses. Ficarias em choque, seria uma 'bofetada' que te acordaria para a realidade. Porquê? Porque decidiste assumir que tudo está bem. Que nada mudou, que nada aconteceu, que sempre foi assim. Se te dissesse, com convicção, o que penso neste momento, não acreditarias. Acreditas, com tanta força, que nada se passa, que isso se tornou uma realidade. Desculpa por isso. Por me resguardar, por me esconder, por fingir ser assim, quando na verdade, não o sou. Não queria, desculpa. Mas eu sei que jamais poderei dizer tudo o que penso, tudo o que sinto. Eu sei, que jamais conseguirei fazê-lo, serei sempre isto, um ser desconfiado. Porque toda a gente pensa que me conhece, toda a gente acha que sou a pessoa mais feliz do mundo, que nada me deita abaixo, que felicidade é o meu nome do meio. Eles acreditam que me conhecem. E tu? Acreditas? Não sei se quero um sim como resposta, ou um não, ou um talvez. Não quero segredos, não quero esconder nada, não quero ser uma pessoa afastada, não quero, não quero, não quero. Mas também não quero a fraqueza. Não quero parecer vulnerável, fraca, frágil. Desculpa, por favor. Eu não queria isto. Eu sei que sorrio. Eu sei. E talvez não devesse. Talvez devesse agir perante os meus pensamentos e sentimentos, talvez devesse deixar a máscara em casa, só por um dia, só por uma vez, talvez o devesse fazer. 
Ficarias aqui, se o fizesse? 
Ou irias embora? 
Deixavas-me?
Tenho medo. Confesso. Estou magoada e assustada e não quero estar assim. Não quero que me julgues por isto. Por favor, não me julgues. Imploro-te. Não preciso de julgamentos. Preciso que me abraces e digas que nunca deixarás o lugar que te pertence, vazio. Por favor, promete-me isso. Eu necessito disso, com tanta intensidade. Mais uma vez, desculpa. Desculpa se errei. Não queria. Eu sei, que muitas vezes agi de forma errada. Não queria. Nunca o quis. 
Desculpa.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Sufoco

Por vezes, é como se não desse para respirar. Como se o ar falhasse, de tão longe que se encontra. Como se a minha traqueia tivesse um escudo que não permitisse a sua passagem. Um peso no peito, que impede as contrações do diafragma. Os meus pulmões não têm espaço para mais. As minhas mãos tremem. Quero controlo, mas não consigo obtê-lo, é algo demais para mim, simplesmente demais. Tento, mesmo assim, tento, a respiração está acelerada, o 'pumpumpum' descontrolado do meu coração preenche-me os tímpanos, afasta a calma que preciso, berro por silêncio, na minha cabeça, mas os pensamentos falam mais alto, berram mais alto. Tento inspirar fundo, sinto a pressão daquela força a impedir-me de o fazer. Uma pontada, mesmo nos pulmões. O que é isto?, pergunto-me, Como cheguei a este ponto? O meu estômago revolta-se, as minhas mãos tremem, num descargo de adrenalina, sinto arrepios pela minha espinha, o quarto começa a mover-se, num rodopio interminável, sinto o corpo a fraquejar, não consigo mais suportar mais o meu peso, cai no chão e envolvo-me em mim mesma, como se isso o fizesse parar, como se isso me desse controlo, mas não pára, não dá, não consigo. Tento chegar-lhe, tento alcançar aquele pedaço de ar que me falta, mas não consigo, ele está tão perto, tão longe, tão aqui, mas tão ali. Sei que neste ponto já a água saí de maneira estúpida, sem querer parar, não consigo conter-me, por mais que tente, não consigo, as minhas mangas estão encharcadas em lágrimas, a tremerem nas minhas mãos, descontrolo total. E depois.. nada.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Herói de ontem, Herói de hoje, Herói de amanhã

É como quando és pequena, e tens aquele peluche. Tu sabes, sabes que tens medo. Do escuro. Do silêncio. Do aborrecimento. Aquela pequena coisa fofa que te servia de almofada nas grandes viagens. Aquele pela qual procuravas todas as noites, antes de dormires. E que, provavelmente, caía no chão a meio da noite. Esse ursinho, ou porquinho, ou ratinho, era o teu companheiro. Ia onde tu ias, fazia o que tu fazias. Ela era o teu porto de abrigo, não é verdade? No meio de um pesadelo, tu abraçava-lo, e os monstros no armário ou os de debaixo da tua cama, já não te faziam mal. Era ele que comparecia a todas as tuas 'festas', com quem tu falavas no final da escola, e até, às vezes, ele respondia. A meio da noite, se querias tinhas de enfrentar as divisões vazias, era ele que te acompanhava. Era, basicamente, o teu herói. Que te protegia e salva-guardava. Mas a verdade, é que tu cresceste, não foi? E apercebeste-te, que o escuro já não é o mesmo, o silêncio, igualmente. O aborrecimento mudou de formato. E a almofada que queres, já não é ele que ta fornece. Os tempos mudaram, não foi? Esse ursinho, ou porquinho, ou ratinho, está agora no fundo da cama ou numa prateleira, lá bem em cima. Agora passas, vais e vens, e ele fica-te a ver. A ir e a vir. Quando voltas da escola, já não é ele o primeiro a receber um bom-dia. Muito menos o primeiro a quem contas o teu dia. Muito provavelmente, já o fizeste com alguém. Honestamente, nem te apercebes disso. Não te apercebes o valor que o teu pequeno grande herói perdeu, em tão pouco tempo. A bem dizer, o teu herói já é, muito provavelmente, outro. Cresceste, e com isso, mudaste. As divisões vazias, agora são de outro tipo e quando as tens de enfrentar, não é ao teu ursinho, ou porquinho, ou ratinho, que vais pedir ajuda. Quando dás por ti, já não é por ele que procuras antes de dormir. As viagens? Essas mudaram, os caminhos são diferentes, atingiram proporções enormes e não levam somente umas horas a serem percorridos. Consequentemente, já não é aquele pequenino que vai contigo. O teu porto de abrigo mudou, tão rapidamente. É natural, normal, quando se cresce. Mas confessa, que à noite, quando tens aquele pesadelo, ainda é ele que te conforta. Confessa, que quando o escuro se torna tão sufocante, é ele, no fundo da tua cama, ou na prateleira alta que abraças. Porque apesar de viveres a tua vida, apesar de cresceres, apesar das coisas mudarem, há coisas que permanecem. E aquele ursinho, ou porquinho, ou ratinho, é a prova disso.