domingo, 30 de setembro de 2012

O mar é fiel 12*

Deixo a minha mala cair na areia. Enquanto corro, tiro os ténis, atiro as meias, dispo a camisola, a t-shirt, as calças e lanço-me para o mar gelado. Ele está em fúria, tal como eu. Como se sentisse a minha revolta, como se senti-se a minha dor, como se fosse dominado pelos meus sentimentos. Venho à tona, para recuperar o ar mas uma onda bate-me em cheio na cabeça, fazendo-me engolir imensa água. Tento vir outra vez à tona, mas outra onda embate-me de novo. Os pulmões ardem-me, ansiando por algum ar. Frederico. Tento nadar para fora da zona onde as ondas rebentam, ignorando a dor no meu peito, a necessidade desesperante de ar. Cãibras. Os meus braços estão entorpecidos, a água estão tão gelada, parece que estou rodeado de cubos de gelo. 
Tento vir à tona. Tento, não, consigo. Respiro o ar gelado da praia, sentido um grande ardor na garganta, como se estivesse a respirar aço. Bato os pés freneticamente, para me manter na superfície. O ar completa-me os pulmões e depois sai para a atmosfera. Sinto o meu nariz congelado. Ignoro a dor. Levo um pouco de tempo a entender que está a chover. Tempestade, é isso que vai ser esta noite, uma enorme tempestade. Frederico. A água da chuva, do mar e do choro misturam-se na minha cara, toldam-me a vista. Vou ao fundo. Nado, não sei para onde, só sei que agito as mãos, os pés, os braços, as pernas. Quero deixar aquela raiva, aquela dor. Ela não merece, ela não merece. Ela é tua mãe. Ela não quer saber de mim. Ela quer-te proteger. Ela não se importa comigo. Ela ama-te. Ela não sabe o que é o amor porra. Enganaste. 
Os pulmões imploram por ar, mas eu não consigo vir à tona. As minhas pernas recusam-se a bater, já não aguentam. Não consigo estar quieta no mesmo sítio, a corrente é demasiado forte. Tento olhar em volta mas os olhos ardem-me por causa do sal. Tento desesperadamente ir à superfície. Os meus pulmões dói-em, uma dor lancinante. Mexo as mãos e consigo finalmente inspirar. Nevoeiro. Frederico. Não vejo a costa, não vejo as rochas, não vejo nada para além daquele imenso mar, onde me perdi. Tu és fiel, por favor, por favor, tu és fiel! Se calhar é isto mesmo que ele quer, que eu vá com ele. Se calhar quer que eu deixe de lutar, que eu pare, pura e simplesmente, de viver. Frederico. Não posso. Frederico. Precisa de mim. Frederico. Ele precisa de mim. Frederico. Não o posso deixar.
- LUA? ONDE ESTÁS, LUA?
FREDERICO. O ardor da garganta impede-me de gritar, por isso tento seguir o som. Frederico. Frederico. Frederico. Onde estás? Por favor. Tem calma, ele vai conseguir chegar a ti. 
- LUAAAAAA ?
Estou aqui... 
Sinto um braço a agarrar-me a cintura e uma voz ao meu ouvido.
- Deixa-te levar, vem comigo.
Agarra-me e vou com ele, demasiado fraca para contestar. Sabe-se lá como, ele consegue levar-nos por entre as ondas, até à areia. A tossir e agarrada a ele, sento-me não areia. 
- Que estavas a fazer? DIZ-ME? Queres morrer? É disso que se trata?
Não sei se ele sabe que está a gritar, mas aquele som assusta-me, mais do que aquilo que já estou.  Encolho-me, agarrada à barriga. Não lhe consigo responder, tenho desesperadamente controlar a respiração, mas o ar é tão pesado, tão frio, tão desagradável que os meus pulmões gritam de dor. Estou gelada até aos ossos e noto, pela primeira vez, que estou em roupa interior. Ele também deve ter notado, pois vai-me buscar a minha camisola e veste-ma, como todo o cuidado. Depois disso, ajoelha-se à minha frente e noto que ele está a chorar. Agarra-me nas mãos e olha-me bem nos olhos.
- Nunca mais faças isso, por favor, eu preciso de ti.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Poço

Está tão escuro, tão cinzento, tão sombrio. Olho lá para o fundo, primeiro a medo. É assustadora, a vista de cima. Sei que é perigoso, posso cair, nem sei a altura que tem, mas não consigo evitar, a curiosidade é tão grande que não consigo resistir-lhe. Respiro fundo e concentro-me, tentando notar algo que não seja a cor preta. Não sei o que esperava. Água, talvez. Sim, esperava isso. Afinal, o que é um poço sem água? Não faz sentido. Afasto-me do muro e procuro uma pedra, grande. Está tanto nevoeiro, mal consigo ver um palmo à minha frente. Ajoelho-me, encontrá-la. Costumavam haver ali tantas, porque é que já não existem? Realmente, aquele sítio mudara muito desde os tempos em que ia ali. Não interessava. Pedras eram pedras, não se iam simplesmente embora. Tem de haver ali uma.
Não sei quanto tempo passo ali, de joelhos, a tentar ver algo, a tentar encontrar aquela pedra que não quer aparecer. Procuro, procuro e finalmente encontro. É grande, vá, talvez média e pesada, tal como eu queria. Vou de novo para junto do lago e largo-a, deixando-a cair no vazio. Debruço-me, até ficar com a cabeça totalmente dentro dos muros do poço. As minhas mãos agarram-se às bordas, procurando estabilidade. Espero, espero e espero até que oiço um 'ploc' a avisar que a pedra já se encontra lá em baixo, em água. Que distância, meu Deus. Quanta água haverá lá em baixo? Será muita? Maior do que a altura da pedra é, de certeza, pois amparou a sua queda. Ampararia a queda de um ser humano? Teria altura suficiente para tal? Quem me dera saber. 
Tento sair, mas o pé escorrega-me na lama e tenho de me agarrar com força ao muro. Aleijo os dedos ao raspá-los no muro, arranho-os. O meu coração dispara. Respiro fundo e tento acalmar-me. Tento sair outra vez, com calma, mas o pé falha-me, e desta vez, as mãos não aguentam o peso e eu sinto-me a cair. A minha cara bate nas paredes do poço, os pés procuram desesperadamente um apoio, os dedos buscam tijolos saídos do muro para se agarrarem, mas só encontram musgo e plantas que se partem ao toque. O meu corpo tenta encontrar estabilidade, equilíbrio. Vou embatendo em fios, quanto mais deixo, mais chegados e próximos são. Continuo a cair, a cair e a cair, o que me parece ser uma eternidade. Os pulmões sentem necessidade de respirar e quando o faço noto o odor do ar, a pobre, bafiento. Quando dou por mim, estou  dentro de água. 
Uma água oleosa, nojenta. Bato os pés e venho à tona, inspirando profundamente, deixando aquele ar sujo entrar dentro de mim. Tusso, pois tenho algo na garganta. Não quero saber o que é, tenho nojo só de pensar nisso. Olho para cima e vejo um ponto, um único ponto de luz, lá em cima de tudo, bem lá ao fundo. Tento olhar em volta, mas não consigo ver nada. Não entendo se isso é bom ou mau. O pavor invade-me e sinto o estômago às voltas. ''AJUDA'', grito mas ninguém me ouve. Quem estará ali, àquela altura, naquele sítio? Ninguém, só uma louca. É isso mesmo, uma louca como eu, que agora está presa num poço. 
A minha mente começa a pensar em baratas, lagartos, sanguessugas e outros animais que possam viver ali, o que só aumenta o meu terror. Bato as pernas e agito os braços, freneticamente, agindo por medo, por pânico. Agito a água toda e grito, berro até. Tento normalizar a respiração mas não consigo. Ninguém está ali, para me acudir, ninguém está ali para me ajudar, para me ouvir. Ninguém. Estou sozinha. Quanto tempo aguentarei aqui? O meu corpo ficará cansado, começarei a ficar com cãibras, vou ficar com fome e sede. Começo a sentir coisas nas minhas pernas, no meu corpo. Estou a chorar, as lágrimas escorrem-me enquanto a minha mente procura furiosamente uma saída, mas não há. Tento escalar a parede, mas esta está húmida, não há pedras saídas, não há nada. 
E como uma criança que acaba de nascer, berro a plenos pulmões.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Tenho 12 anos e (...)

Sentir falta faz parte.
- Sim, está tudo bem e contigo?
É o que digo todos os dias.
- Claro que ando bem-disposta Jaime.
Quando de manhã quando acordo sem energia. 
- Sim, a escola vai bem.
Quando chego à escola e desabo por ele não estar lá. 
- Tenho que prestar, tenho que ter boas notas. E tu? Como te estás a safar sem mim?
Quando entro na sala e mal consigo prestar atenção porque não tenho o seu calor reconfortante sentado ao meu lado. 
- Eu sou sempre forte Jaime, como tu me ensinaste.
Quando me faço de forte, há noite, quando eu e ele falamos à noite, para tentar matar esta saudade que se meteu entre nós. 
- Sim, também tenho de ir, já é tarde. Beijinhos, Jaime. Também gosto muito de ti.
E quando depois, choro por não o ter comigo. 
Vou para o meu quarto.
Não conheço ninguém aqui, nem passado um ano as coisas melhoraram. Continuo a não conhecer ninguém. A não me dar com ninguém. Lembro-me da minha antiga escola. Para além do Jaime, não tinha amigos. Ele tinha. Muitos. Talvez se esteja a dar bem, sem mim.
Não. Ele não consegue. És a sua protegida, lembraste?
E uma mão vai instintivamente agarrar o colar que ele me deu. 
Ele tem pessoas que cuidam dele. E eu terei de cuidar de mim. Tem que ser.
Vou fazer um esforço, vou-me empenhar.
Choro ainda mais e abraço a almofada. Isto é tão doloroso.

O mar é fiel 11*

O tempo passa a uma velocidade estrondosa. Ainda ontem estava irritada por ser verão e hoje já tenho de vestir um casaco para vir até à praia. É, realmente, incrível. Dantes, durante o verão, era eu que tinha de esperar por Frederico, todos os dias. Ia para a praia, e ficava sentada na areia, a vê-lo, simplesmente a vê-lo a fazer o seu trabalho. Não o podia distrair, afinal de contas, ele era o nadador-salvador, tinha de ter atenção. Então ficava ali, a observar cada traço do seu corpo, a escutar o mar, a desejar arduamente que a noite chegasse. Que pudéssemos ir para a nossa gruta. Nadar. Rir. Conversar. E conversávamos, muito mesmo. Ele contava-me coisas sobre o seu passado, os seus 'amigos' e colegas, a sua família. Eu tentava falar de mim, mas era difícil, pelo que, normalmente, falávamos sempre dele. 
Agora, de inverno, durante as aulas, já não é assim. Entre aulas, testes, trabalhos de grupo e trabalhos de casa, é difícil estar com ele. Por norma, levo os livros e cadernos e vamos os dois para a gruta, sozinhos e ele fica a ver-me a estudar, sem proferir um único som. Ele consegue ficar calado durante muito tempo. Tenta sempre conciliar os seus trabalhos com o meu horário, mas quando não consegue, troco o nosso paraíso pelo meu quarto.  
O grande problema e o nosso maior inimigo, é o tempo. Temos tido sorte, tem estado sol e algum vento, só um ou outro dia de chuva. Quando assim é, vamos para o café do velho rezingão. Ficamos lá numa mesa ao canto e ninguém dá por nós nem nós por ninguém. 
A cada dia que passa, a nossa relação melhora. Somos amigos. Recordo-me disto, todos os dias. Para que fique claro. Mas custa tanto. O desejo de avançar para algo mais é devastador. Mas tenho tanto medo. Pela primeira vez, estou a aproximar-me de um ser-humano. Pela primeira vez, estou a confiar em alguém. Alguém que não o mar. Ah, o mar. Tenho tantas saudades dele. Apesar de passar o tempo quase todo na pequena gruta, já não tenho uma ligação concreta com o mar à muito. Um momento só comigo e com ele, agora passo o dia com Frederico…
- LUA!
O grito assusta-me de tal forma, que salto e acabo por cair no passeio. Olho em volta e vejo a minha mãe. Oh não, por favor, hoje não.
- Anda para dentro, temos muito que falar – e dito isto, volta-me as costas e entra dentro de casa.
- Obrigadinha pela ajuda – resmungo, entre dentes, levantando-me. Entro em casa e fecho a porta atrás de mim.
- O que é que foi?
- Olha o tom, minha menina, sou tua mãe, exijo respeito.
Sinto a resposta presa na garganta, mas esforço-me por a deixar lá.
- Gostaria de saber, se não for muito incómodo, porque raio não estavas tu em casa quando cheguei!
Senti a raiva a invadir-me.
- AS PESSOAS NÃO VÃO FICAR ETERNAMENTE À TUA ESPERA SABIAS?
- Olha o tom, já te disse. Falei com a empregada, ela diz que tu só vens a casa dormir, o que é que andas a fazer afinal?
- A empregada tem nome: é Dona Matilde. E se passasses mais tempo aqui do que fechada em aviões, saberias!
- Eu exijo saber!
- Não tens esse direito! Vens a casa uma vez em cada três meses e já pensas que mandas? 
- Até teres 18 anos, quem manda aqui sou eu por mais que tu queiras ou não.
- Quero lá saber. Eu tenho boas notas, porto-me bem, não me meto em sarilhos e não dou trabalho nenhum – qual é o problema de sair? Não é o que tu fazes o ano todo?
- Isso não te dá o direito..
- O que não te dá direito é estares completamente nas tintas para mim e depois chegas aqui como se fosses rainha, eu não quero saber se tu achas as coisas adequadas ou não, a tua porcaria de opinião pouco me importa!
Nem entendo que estou a gritar, nem entendo que me descontrolo, nem entendo que já estou com lágrimas grossas a escorrer-me pela cara.
A minha mãe está calma, muito calada e branca, muito branca.
- Lua, eu…
- Esquece, não quero saber! Queres saber o que tenho feito? Tenho estado com um amigo. Problemas? Não te preocupes, ao contrário de ti, ele sabe cuidar de mim!
Viro-lhe as costas, não quero saber de mais nada. Abro a porta de tal forma que ela quase que sai dos gonzos. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O mar é fiel 10*

Felicidade, é o que melhor me descreve neste momento. Enquanto nadamos juntos. Vimos à tona, respiramos e voltamos para debaixo de água. Ele agarra-me e eu agarro-o. Bem junto a mim. Que estás a fazer? Ele é um desconhecido! E no entanto, sinto que o conheço. Sinto que o conheço à anos. Aquele estranho, seja lá quem for, faz a minha pele arder, mesmo naquela água gelada, e ao mesmo tempo ter arrepios pelo corpo todo.
- Que achas de sairmos um pouco de dentro de água?
Desde que estejamos juntos, é-me igual.
- Sim, pode ser.
Ele sorri e eu sorrio ainda mais. Senta-mo-nos na areia, mas não muito próximos. Sinto as palavras na minha garganta, tenho de as dizer. Vá, estúpida, pede desculpa. Mas e se ele não desculpar? Mas estás parva? Viste bem como ele está contigo? Sim, mas.. Pede-lhe desculpa duma vez e
arruma o assunto!
- Frederico? – sabe tão bem dizer o nome dele.
- Sim, Lua? – sabe ainda melhor ouvi-lo dizer o meu nome.
- Desculpa.
Ele olha-me, sem entender. A sério que já esqueceu?
- Por ontem. Desculpa ter reagido daquela maneira. Desculpa ter-te falado naqueles modos. Não merecias, fui parva, desculpa, a sério. Tu ajudaste-me, com tanta paciência e eu perdi as estribeiras daquela forma, não o devia ter feito, desculpa
- Hey, calma.
Ele aproxima-se de mim e percebo que falei com a voz cheia de culpa, de desespero, de medo que ele não perdoe, atropelando as palavras umas nas outras.
- Por favor, desculpa, a sério - respiro fundo e noto que tenho água nos olhos. Parva, não chores!
- Não faz mal, a sério. Eu entendo.
- Entendes? – Olho-o bem nos olhos e olho bem nos meus.
- Sim, entendo. O medo de alguém só querer saber de nós porque temos dinheiro. Porque somos ricos. Eu sei o que isso é?
Ele já se afastou de novo.
- Como… como é que entendes?
- Porque eu já passei por isso – a sua voz está desprovida de calor. Está fria, mais fria do que aquele ar. Fico calada, até ele continuar. Será que vai confiar o suficiente em mim para me contar aquilo?
Passado um bocado, ele fá-lo.
- Quando era mais novo, era rico. Podre de rico mesmo. Eu podia comprar o que quisesse quando quisesse. Os meus pais... Eles eram do mais snobe que há. As pessoas eram minhas amigas pelo dinheiro. Ninguém entendia que eu não queria aquilo, que eu não queria ser rico, que eu não pertencia aquele mundo. Eu tinha tudo mas não tinha nada, entendes? Ninguém me queria ouvir, ninguém me queria feliz, ninguém queria o meu bem-estar.
Isto ataca-me o coração. Por completo. Se ele soubesse como o entendo, se ele soubesse isso.
Vejo que ele se está a tentar acalmar. Tem lágrimas nos olhos. Não quer dar parte fraca. Ele não é fraco!
- Então fugi - continua - Tinha 15 anos na altura. Ninguém me procurou. Acho que os meus pais devem ter inventado uma mentira qualquer, não sei. Eles sempre ligaram mais às aparências do que a outra coisa qualquer. Comecei a minha vida noutro lado. Nunca fui de muitas despesas. Trabalhava a tempo inteiro num bar ao pé da praia, no verão. Fiquei em casa de um amigo meu, que conheci nas férias. A mãe dele aceitou fazer de minha encarregada de educação. Durante o ano-lectivo, tinha um part-time. Não ganhava muito, mas era o suficiente para mim. Quando fiz 18 anos, vim para aqui. Trabalho como nadador-salvador no verão e de no resto do ano, faço um pouco de tudo. Nunca mais fiz amigos, desde que para aqui vim. Até ontem, acho eu. 
Olha-me bem nos olhos. Sei que é verdade. O que ele me contou. Eu sei que sim. Como sabes? Vais confiar nele? Ele é um estranho. Não, não é. 
Aproximo-me delem, que já está com grossas lágrimas a caírem lhe no rosto. Sento-me ao seu lado e toco-lhe na face
- Eu estou aqui. Entendes? Eu percebo-te tão bem, eu sei o que é estar sozinha. Mas tu não estás sozinho. Não mais. Eu prometo. 
- Porquê? Tu não me conheces, como sabes que disse a verdade?
Não respondo, limito-me a encolher os ombros e a abraçá-lo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Tenho 11 anos e (...)

Vou-me mudar. Sinto-me tão mal. Estou no parque em frente à minha casa, com o Jaime. Estamos num silêncio tão pesado. Ele mal fala. Isso é mau sinal. O Jaime tem sempre algo a dizer. 
Repentinamente, ele agarra-me a mão e fala numa voz fraca:
- Vais-me telefonar, certo Olivia?
Olho para ele, tem lágrimas nos olhos. Nunca penso que o Jaime pudesse chorar. Ele para mim, é a pessoa mais forte do mundo. Como é possível viver sem ele? Não é.
- Todos os dias Jaime, prometo - chego-me para ele e encosto a cabeça ao ombro dele. Começamos a chorar, os dois, baixo, para as nossas mães lá ao fundo não nos ouvirem. De repente ele levanta-se e tira uma coisa do bolso da camisola. 
- Toma - e mete o pequeno objecto na minha mão. É um colar, com uma ave. É lindo, só porque ter sido dado por ele.
- Obrigada Jaime.
Abraço-o.
Olivia? - é a minha mãe - anda querida, temos de ir embora.
Vamos ter com elas e despeço-me da mãe do Jaime e ele da minha. Enquanto elas se despendem, despedimos-nos nós. Ele chega a sua mão junto à minha e fazemos aquele nosso toque, que é nosso, só nosso e de mais ninguém. Depois ele olho para mim.
- Adeus Olívia. 
Começo a chorar de novo.
- Adeus Jaime.
Entro no carro e ponho o cinto. Da janela consigo-o ver, enquanto o carro se afasta.

sábado, 8 de setembro de 2012

O mar é fiel 9*

Olho pela janela e vejo o mar. Acho que é a única coisa boa nesta casa. O facto de poder ver o mar.
- Menina Gaspar?
Sorrio ao ouvir esta voz. Dona Matilde.
- Estou aqui – grito e vejo-a a aparecer à porta do meu quarto. Podia ser feita de porcelana. Tão frágil que era. Sorri-me e eu retribuo-lhe o sorriso.
- A sua mãe ligou. Teve de ir de emergência à Dinamarca. Sabe como é, coisas de trabalho.
O meu sorriso desvanece-se.
- Claro… - murmuro.
- Oh não fique assim! A sua mãe faz tudo por si, menina.
- Claro claro.
- Bem, acho que vou andando. Quer que passe cá amanhã?
- Não, não, deixa estar. Eu desenrasco-me sozinha.
- Está bem então. Até segunda, menina.
- Até segunda, Dona Matilde.
Oiço a porta da rua fechar-se. Passado um pouco, sou eu quem sai. Encaminho-me para a praia. Adoro o facto de já ser de noite, o facto de a praia já não estar inundada em pessoas barulhentas, em pessoas que não se importam com nada para além das suas vidinhas. 
A minha mente voa para o pedido de desculpas. O que vou dizer? Será que ele vai estar lá? Se não estiver, que faço? E se estiver, que lhe digo? Será que ele me vai desculpar? Ou será que não?
Quando lá chego, sinto-me no paraíso. Está praticamente vazia. Um ou outro casal a namorar. Um ou outro grupo de amigos. Nada mais. O bar, lá mais longe, está aberto, mas como a luz não chega aqui, este lado está praticamente deserto.
Mais animada, salto para a areia. Vou até às rochas e começo a trepá-las, com cuidado. Eu ainda mal recuperei dos meus ferimentos de ontem e já me estou a meter nesta aventura de novo. Não posso voltar a cair. Chego à entrada da gruta e sinto a água por debaixo dos meus pés. Não sei o que me deu, vim de ténis. Talvez o meu subconsciente saiba que aquilo não é pavimento para chinelos. Seja como for, começo a atravessar as rochas, com cuidado para não escorregar. 
Chego ao lugar da lagoa, e o meu coração dispara. Ele está ali. Vejo a camisola e os ténis pousados na areia. E agora? 
Olho para ele, dentro de água, que lhe dá pela cintura. Vejo-lhe os músculos das costas, bem definidos. Sinto algo que nunca senti. Não entendo. Que é isto? Só quero ir ao seu encontro. Abraçá-lo. Talvez até, beijá-lo. Beijá-lo? És maluca? Tu nem o conheces! Expulso estes pensamentos da cabeça. Primeiro, tenho de lhe pedir desculpa. E rezar para que ele me desculpe. Tens que ir com calma.
De repente ele vira-se e sorri. Ele sorri-me. Porque o faria? Eu fui tão parva com ele.
- Vieste – diz. Sai da água e vem ter comigo. Estica-me o braço, de modo convidativo. – Vai um mergulho?
Sorrio, sem responder e começo a descalçar-me. Ele fica a observar-me, enquanto tiro a camisola e os calções. Esta noite trouxe bikini. 
Antes sequer, de poder contestar, ele pega-me ao colo e leva-me para dentro da lagoa. O que é isto?
- Pronta? - pergunta-me.
Para?
Mas antes de conseguir, sequer, dizer alguma coisa, caímos os dois dentro de água.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O mar é fiel 8*

Saio de casa e vou diretamente para a praia. Eu odeio ir à praia à tarde, como já disse, mas eu preciso desesperadamente de o ver. Será que quero mesmo encará-lo depois do que fiz? Deixa de ser parva.
Lembro-me da noite passada. Aliás, não penso noutra coisa o caminho todo. Como ele me ajudou.  E eu nem lhe dei hipóteses. Mandei-o logo embora, não o deixei expressar-se, nem lhe dei margem para dúvidas. Que estúpida! 
Quando estou quase a chegar à praia, ainda não sei o que desejo. Será que o quero ver? Será que não? Não sei, não consigo perceber. Sinto-me irritada. Não com ele, comigo. Por ter baixado a guarda. Por o ter deixado ver demasiado. Estúpida casa. Mas acima de tudo, por o ter tratado de uma forma que ele não merecia. Porque por mais motivos que eu tenha para me enervar, nenhum deles me dá permissão para o tratar assim. 
Quando chego à praia, a minha irritação aumenta. Está cheia. Atulhada. De pessoas. Barulhentas. Inspiro várias vezes, tentando acalmar. Olho para o mar. Como é que consegues estar sempre tão calmo? Cheio de pessoas, ele transborda paz. Só barulho. Não há calma. Mas o mar está calmo. Quem me dera conseguir manter a calma como o meu amigo.
Queria ir à gruta, de novo, mas com tanta gente aqui, será impossível não atrair as atenções. E não quero que ninguém descubra o meu pequeno paraíso. O meu pequeno segredo. Meu e dele. E ao recordar isto, recordo também o Frederico. E sinto vontade que ele esteja ali, ao meu lado, naquele momento. Lembro-me do toque dele, enquanto me ajudava a sentar. Enquanto me ajudava a sair daquela gruta. Enquanto tratava das minhas feridas. Enquanto me abraçava para me proteger do frio da noite. E instintivamente, fico mais calma. 
Fico confusa. Só o mar me acalma. Com a sua música. A sua tranquilidade. Mas desta vez não. Foste tão estúpida. Pois foi. Tratei-o mal, quando ele merecia todo o carinho. Carinho que eu estava disposta a dar-lhe. Ele foi bom para mim e eu fiz-lhe aquilo. Desejo de todo o meu coração para que ele volte. Que ele apareça ali. Queria pedir-lhe desculpa. Pedir-lhe perdão.
Suspiro e encaminho-me para a praia, para a beira-mar e comecei a andar sem destino. Descalço-me e pego nos chinelos. Na minha cabeça, começo a imaginar cenários do que pode acontecer. 
A primeira opção, é de nunca mais o ver. Essa opção inicia uma enorme dor no meu peito. Quero vê-lo. Aliás, acho que nunca desejei tanto ver alguém na minha vida. Se eu nunca mais o vir..
Logo depois, a lógica apodera-se de mim. ‘Tenho tanto interesse em manter esta gruta secreta, como tu tens.’ Isso quer dizer que gosta da gruta. Então vai voltar. Sorrio. Se ele vai voltar, então eu também vou voltar. Decido que irei à gruta esta noite, pode ser que ele esteja lá. Ele vai estar. Tenho a certeza.
A minha mente, voa, para o meu problema: pedir desculpa. Nunca tive que pedir desculpa, por uma razão muito simples: nunca fiz amigos. O meu melhor amigo é o mar. Sempre foi. Sempre irá ser. Talvez não sempre. Afasto este pensamento da minha cabeça. De onde é que isto veio? O mar é o meu melhor amigo e ponto.
Concentro-me no meu objetivo. Pedir desculpa. Os cenários são muitos. Uns bons, outros maus. Ele poderá muito não me desculpar. Aliás, é mesmo o mais viável. Ele não me conhece, não sabe quem eu sou. Para ele, fui uma estranha de quem ele cuidou e que o tratou mal. Sou uma parva que ele não quer voltar a ver. E sou, sou mesmo.
Sou tão estúpida. Ele não me vai desculpar. Porque haveria de o fazer? Sinto-me tão mal comigo mesma. Queria dar um mergulho, mas recuso-me a fazê-lo com tanta gente ali a ver, a invadir o meu paraíso.
Vou-me embora. Já não vale a pena ficar aqui. À noite volto. Volto e mergulho. Volto e falo com ele. Volto e peço desculpa.

O mar é fiel 7*

Saímos do bar. Está tanto frio, meu Deus. Pego no casaco ainda molhado e visto-o. Em nada contribuí para me aquecer, pelo que juntos os braços ao peito. Ao menos, as minhas feridas estão anestesiadas por aquele gelo.
- Tens frio? - pergunto ao Frederico. Ele não tem nenhum casaco e está vestido como se estivessem 40ºC.
- Não e tu, tens?
- Não, achas...
Ele ri-se e junta-se bem a mim, sem saber se me deve abraçar ou não. Abraça-o, de uma vez. Não, não consigo. Consegues sim, anda lá. Respiro fundo e junto-me ainda mais a ele, e fico imediatamente mais quente. Toco-lhe no braço. Está quente. Como é que é possível? 
Sem hesitar mais, ele mete uma mão na minha cintura e puxa-me para ele, abraçando-me. Deixo automaticamente de sentir frio. Continuamos a andar, com ele sempre a abraçar-me. Isso sabe tão bem.
Nenhum de nós fala, por isso está um silêncio enorme à nossa volta, pelo que, quando ele fala, eu assusto-me.
- Então, ainda não me disseste como te chamas..
- Lua - respondo, muito rapidamente.
Ele olha para mim, céptico. 
- Lua?
Suspiro. 
- Sim, Lua.
Ele pára. Será que acha que estou a gozar? Constato óbvio: ele não acha que eu estou a falar a sério.
- O meu nome é mesmo Lua, Frederico.
Ele inclina a cabeça, com se ainda não estivesse convencido. Eu não digo nada, fico em silêncio até ele se dignar a acreditar em mim. 
- É um nome bonito. Aliás, acho que te assenta bem. Que outra rapariga andaria de madrugada, a explorar grutas? Para além disso, acho que se a Lua tivesse uma filha, poderias muito bem ser tu.
Olho para ele, com um ar divertido.
- Poderia ser eu? Então porquê?
- Bem, para começar, acho que nunca na minha vida vi ninguém tão pálido como tu.
Fito-o, com desagrado. A minha tez tinha sido, já muitas vezes, motivo de gozo na escola. Era bom que ele não o fizesse.
- Não estou a dizer por mal! - levanto os braços, em sinal de paz. Vejo-lhe os músculos, bem definidos e sinto algo na minha barriga, como nunca senti antes. Algo bom, muito bom. - Acho que te assenta bem. Mais esse cabelo loiro e esses olhos sem cor própria. 
- Os meus olhos são azuis, bem azuis.
- Ai são? Parecem-me um cinzento esverdeado.
- Isso é uma cor?
- Claro que é!
- Tens a certeza? É que se não tiveres, estás-me a induzir em erro e isso não se faz. 
- Uau, usas palavras caras.
Suspiro e retomo caminho. Ele apressa-se a acompanhar-me, mas desta vez já não me abraça. Quem me dera que o tivesse feito, estou a morrer de frio.
Começo a pensar que nós os dois somos o oposto. Ele é alto, bem feito, moreno, muito moreno, com um cabelo vermelho vivo e transborda calor por todos os lados. Eu sou baixa, se bem que tenha os músculos bem desenvolvidos devido a anos a nadar. Sou muito branca, demasiado até e não importa quanto sol eu apanhe, eu nunca me bronzeio. Os meus lábios são fininhos, cor-de-rosa claros. Somos diferentes. Eu poderia ser filha da Lua. Ele poderia ser filho do Sol. Os olhos dele transportam chamas. Um fogo que parece não ter fim. Tal como o sol
De tanto pensar nisto, acabo por lho dizer.
- Tu bem que poderias ser filho do Sol.
Ele olha-me, sem qualquer expressão.
- Acho que sim - e encolhe os ombros.
Não falamos mais, e eu vou tão perdida nos meus pensamentos que só noto que chegámos a casa quando vejo o Frederico a parar, com um olhar estupefacto.
- Uau - murmura ele - Que casa! Quem é que vive aqui?
Um âncora puxa-me para a realidade assoladora. Sua estúpida, porque foste tu deixá-lo ir até aí? És tão burra, mas tão burra. 
- Lua, estás bem? Ficaste ainda mais pálida. Conheces os donos? Sabes quem são?
- Sou eu que moro aqui, Frederico - baixo a cabeça e sinto-o a fitar-me.
- És rica? Oh meu Deus, tu és rica! Juro que eu nunca..
Sinto a fúria e invadir-me. Olho-o bem nos olhos.
- E que tem eu ser rica? Que tem ter uma casa grande? Diz-me, que tem? Não tem nada. É uma casa. Uma porcaria de uma casa! Não passa de um objecto. 
- Eu... - gagueja. 
- Não, esquece. Obrigada por me teres ajudado. A sério. Agora, se me dás licença, tenho que ir descansar. Boa-noite.
- Ouve...
Não lhe dou hipóteses. Viro-lhe as costas, e entro em casa.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Eu lembro-me, todos os dias

Olá, sou eu. Sim, sou eu. Não sei se te lembras. Se te recordas. Mas eu recordo-me sabias? Todos os dias. Sou eu, sim, sou eu. Eu, que deixaste. Eu, que magoaste. Eu, que abandonaste. Sou eu, simplesmente eu. Só eu. Mas sabes, já não sou a mesma. Sabes disso, não sabes? Sabes que cresci? Que mudei? Que amadureci? Acho que sabes. Apesar de tudo, conhecias-me. Ou talvez não. Talvez nunca me tenhas conhecido como eu julgava que conhecia. Conhecias? Gostava de saber que sim, talvez isso ajudasse ao buraco que tenho, um buraco que deixaste, um buraco que ninguém repara. Talvez quando olhas para os meus olhos, vês o castanho-escuro que eles contêm. Só isso. Não sei se ainda tens a capacidade de identificar a verdade por detrás da sua cor. A dor. A mágoa de te ver partir desta forma. Não sei se algum dia soubeste. Não sei, não sei. É difícil. Isto tudo. Esta situação. Este cenário. Consome-me. Eu mudei. E tu? Mudaste? Eu não sei. Não consigo entender. Não consigo ver isso. Magoa-me, desculpa, é verdade. Desculpa se sou fraca. Desculpa se não consigo. Desculpa. Perdoa-me. Eu acho que mudaste. Para pior talvez. Ou talvez, esse ‘pior’ seja apenas uma máscara. Talvez estejas a esconder tudo o que sentias, de mim. De mim. Que te vi tudo. Que olhava nos teus olhos e descobria a verdade. De mim. Para a qual não tinhas segredos. Se calhar voltaste a refugiar-te no teu muro. Um muro que me afasta de ti, de uma maneira parva. Mas ela afasta. Esse muro, já não era barreira para nós. Mas agora é. Será isso? É apenas um meio de defesa? Ou és realmente isso? Eu não sei. Tornaste-te nisto que vejo? Neste ser sem fundo? Sem calor? Sem emoção? Não, calma. Emoção, essa tu tens. Eu sei que sim. Por mais que mudes, eu conheço-te. Melhor que muitos. Deixaste penetrar demasiado em ti, para não te conhecer melhor do que conheço a mim mesma. Vi demasiada dor nos teus olhos, para a deixar de reconhecer assim. Vi demasiada culpa, para a esquecer desta maneira. Culpa. Que palavra. Tu sente-la? Talvez sintas. Não sei. A culpa foi tua? Sim, muito provavelmente. E desculpa por isto. Desculpa por te culpar. Desculpa por te fazer isto. Desculpa por não ser forte para ultrapassar isto. Eu recordo-me, sabes? Todos os dias da minha vida desde que partiste. Mas não choro. Não, isso não. Já não consigo. Porque o vazio é tão fundo, que nem água tem. Está seco, essa parte de mim, sem vida, sem emoção, essa parte grita por tudo que voltes mas tu não voltas. Tu não vais voltar. Jamais. Eu sei. E tento convencer essa parte de mim. Não consigo. Mais uma vez, desculpa. Mais uma vez, perdoa-me. Porque eu estou a tentar ser forte, como me ensinaste. Porque sim, tu não me deste só dor. Aprendi muito contigo. Será que aprendeste alguma coisa comigo? Eu não sei. Já poucas coisas são as que sei sobre ti. Acima de tudo, eu quero que sejas feliz. E desculpa-me, por não te conseguir perdoar.

O mar é fiel 6*

Sinto o fresco da água oxigenada nas feridas da minha perna. Sabe tão bem. Ainda arde, um pouco, mas está a passar. Aquele estranho, seja lá quem for, levou mesmo muito a sério os meus ferimentos e decidiu, que como eu não ia ao hospital, ele iria ser o meu médico. 
- És a minha pequena cobaia- disse, com um sorriso na voz. E começou a cuidar de mim. Soube bem. Há muito que alguém não me fazia isto. Sinto-me como se tivesse outra vez 4 anos e tivesse caído enquanto brincava no parque. 
Agora, já tinha as pernas com o curativo e a minha mão com uma ligadura. Ele insistiu em por uma, apesar dos meus protestos. Estou sentada, a um canto do café, que está praticamente vazio. São 4h37 da manhã.
- Toma, mete lá isto na cabeça.
Dá-me o gelo mas ao pegar nele, a minha mão treme descontroladamente. Estou tão fraca. Ele suspira e senta-se na cadeira ao lado da minha.
- Deixa, eu faço isso.
Com um gesto delicado, afasta as madeixas do meu cabelo e mete o gelo no galo. Sabe bem e solto um gemido de alívio.
- Amanhã há meia noite, o galo vai cantar.
- Ah Ah Ah, que engraçadinho.
Ele ri-se e eu riu-me com ele, o que faz a minha cabeça doer ainda mais. Calamos-nos outra vez, enquanto esperamos pelo nosso pedido. O senhor do café, um velho rezingão, não gostou muito quando apareceram mais duas criaturas para lhe aumentar a estadia ali, quando ele já estava a mandar todos embora. Mas, como ele me conhecia desde bebé e eu me estava mesmo muito mal, ele lá acedeu e foi buscar a caixa de primeiros socorros.
- Posso saber como te chamas? - digo. Estou farta de lhe chamar 'estranho' na minha cabeça.
- Frederico e tu? - adoro a voz dele, tão doce, tão calma. Parece a voz do mar.
Ia-lhe responder mas aí chega o nosso pedido.
- Está aqui o pedido - resmunga. Obviamente que pensava puder fechar o bar mais cedo, mas a nossa chegada impediu-o.
- Obrigada... - balbucio e afasto-me ligeiramente do Frederico de modo a conseguir comer. Ele pousa o gelo na mesa e fica a observar-me. 
Pego em metade da tosta e levo-a à boca. Nunca na minha vida uma tosta soube-me tão bem. Mastigo como se nunca tivesse comido nada na minha vida.
- Bem me parecia que estavas com fome - diz, boquiaberto.
Rio-me, o que acaba comigo a cuspir tosta por tudo o que é sítio. Ele também se ri, e a sua gargalhada é tão contagiante, que eu ainda me rio mais. Quando foi a última vez que me ri assim?
Passado um bocado, conseguimos parar de rir. Tenho que respirar profundamente várias vezes antes de voltar a comer, para não haver mais acidentes. Levo mais tosta à boca e continuo a mastigar.
- Bem, acho que já fiquei sujo de tudo menos de tosta... - e começa a tirar os pedaços da camisola de mangas cavas.
- Vai uma dentada? Deves ter fome..
- Não, sabes, enquanto tu andavas a fazer de Indiana Jones versão feminina, eu estava a jantar.
- Parvo - e continuo a comer.
Quando termino, afasto o prato de mim.
- Já posso ir para casa, senhor Frederico?
- Só se me deixares levar-te.
Quero dizer que não. Que já estou bem. Que não é preciso. Mas a presença daquele ser exótico, mexe comigo. E faz-me esquecer a promessa que fiz a mim mesma. A promessa de nunca levar ninguém a minha casa.
- Pronto, acho que pode ser.
Ele sorri, o que torna o seu rosto ainda mais bonito. 
- A sério que isso te faz assim tão feliz?
Ele não responde. Vai até ao balcão e, visto que eu não tenho dinheiro nenhum, ele paga. O velho senhor parece verdadeiramente contente por ver que nos vamos embora.
Anda - diz, e dá-me a mão.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Tenho 10 anos e (...)

Já sei o que é que a palavra custódia quer dizer: significa quem vai ficar a tomar conta de mim. Fiquei com a minha mãe, pois o meu pai não tinha condições, assim o disseram. Tenho muitas saudades dele. Só passo dois fins-de-semana com ele, por mês. Não chega. Sinto falta das suas brincadeiras, do seu olhar traquina. De como ele me ajudava com os trabalhos de casa. A minha mãe é muito boa, mas não tem tanta paciência como o meu pai.
Oiço o toque de final de aulas.
- Anda Olívia, a minha mãe quer falar com a tua, logo podemos ficar a brincar.
É verdade. Quando chegamos ao portão, as nossas mães estão juntas a falar. Pomos a mala no banco onde estão sentadas e vamos para a nossa árvore. Subimos para um ramo, e senta-mo-nos, um ao lado do outro. O Jaime entende que estou triste.
- Anda lá Olívia, tens que te animar.
- Eu só queria vê-lo Jaime.
- Vais vê-lo, não vais passar o fim-de-semana a casa dele?
Abano a cabeça, dizendo que sim. Não quero falar.
- Então tens que te animar.
Chegasse ao pé de mim e põe um braço ao redor dos meus ombros.
- Eu estou sempre aqui, sabes disso não sabes?
- Sei..
Chega a cara mais contra a minha e dá-me um beijinho na boca. 
- Sempre.
- Sempre.