quinta-feira, 19 de julho de 2012

Tenho 9 anos e (...)

Depois da discussão do ano passado, os pais começaram a andar muito chateados, um com outro. A minha mãe chorava muito e o meu pai gritava. Não gosto de o ver gritar. Assusta-me. Mas à noite, um deles vinha ter comigo, falava comigo, dizia que era normal os adultos ficaram chateados. Á cerca de um mês, vieram falar comigo, a dizer que se ia separar. Disseram também que iam decidir quem ia ficar com a minha custódia. Não chorei. Não queria chorar à frente deles. Fui para o meu quarto, e adormeci logo.
Como não sei o que significa a palavra ‘custódia’, decido preguntar ao Jaime.
- Também não sei, Olívia.
- Como não sabes Jaime? Tu sabes sempre tudo.
Choro. Ali eu posso chorar. Ali estou segura. Ali posso ser eu. Ser fraca.
- Oh Olivia.
Ele parece confuso. Sem saber o que dizer. Pensa um bocado e depois fala:
- Ouve, não te preocupes. Seja o que for que vá acontecer, os teus pais vão sempre gostar imenso de ti. Tu sabes que sim. E também sabes que eu vou ficar aqui, bem do teu lado não sabes?
Aceno com a cabeça. Ele abraça-me.

terça-feira, 17 de julho de 2012

O mar é fiel 4*

Não sei quanto tempo passou, mas foi o suficiente para ficar com o corpo congelado. Arrasto-me, literalmente, para fora daquela poça de água. Vou para aquela luz, branca como a neve. É a lua. Tão linda. Tão pura. Sinto os membros doridos da queda. Apesar da areia ali ser fina, não deixa de ser bastante incómoda. 
Fico a fitar a lua. De que estou à espera? Que ela me seque? Talvez seja isso. Mas a lua não faz isso. Ela é uma ouvinte. Aquecer é trabalho do sol. A lua é uma protetora, que nos vigia o sono e protege os segredos. Ela escuta-nos, com paciência, enquanto choramos por um pesadelo. Quando temos insónias, é a nossa amiga que nos acompanha, noite fora, ao nosso lado. 
Deixo-me ficar ali, sem querer saber de mais nada. Com o passar do tempo, a lua começa a mudar de sítio e a gruta deixa de ser tão iluminada. Decido começar a andar, ir ver que mais tem aquele pequeno paraíso para me oferecer. Tento andar com calma, para não voltar a cair. O chão por debaixo dos meus pés começa a transformar-se num monte de rochas, novamente. Tenho o triplo do cuidado para não escorregar. Enquanto ando, reparo que continua a existir vários buracos no teto da gruta. Por isso, esta nunca fica às escuras. Decido quebrar o silêncio.
- Olá?
Olá, olá, olá, olá. O eco permite-me entender que é grande. 
Paro, a meio do caminho. E se aqui vivem sem abrigos? É bem possível. Não me agrada a ideia de ver pessoas neste momento. A gruta é um pouco fria, sem dúvida, mas é alheia a olhos curiosos (a maioria). O único problema é o difícil acesso, mas talvez isso não fosse de grandes dificuldades para eles. Pensa. Já alguma vez vistes sem-abrigos na zona? Não, nunca. E vivo aqui desde que nasci, por isso...
Ponho esta ideia de parte e continuo a caminhar. Vejo pequenos lagartos a passearem-se pelas paredes de rocha. Eles não me assustam. Nada mesmo. E como eu também nas os assusto, continuamos os nossos caminhos. 
Chego a um lugar ainda mais iluminado. É magnífico. É como a orla de uma floresta, mas numa gruta. Ao descer o último rochedo, só há areia. Amarela, fina, reluzente à luz da lua. Lindo. Reparo que há uma lagoa, à minha frente. E reparo também que a água provém de uma pequena entrada, lá mais ao fundo. Algo me diz que já estou em oceano puro. 
Sinto uma enorme vontade de mergulhar, de entrar naquelas águas. Dispo-me, ficando só em roupa interior. Ninguém vem aqui, de certeza. Deixo a roupa na areia e ando para aquele enorme lago, mergulhando. Estou em casa. Nado, boio. Exploro aquele pequeno paraíso. É fácil perder o pé ali. Quando entro, fico com a água pela coxa, dou uns passos e a profundidade já é enorme. No fundo, há corais, e são tão belos. 
Estou tão bem, que nem me dou conta do tempo a passar. Tenho que ir embora. Já é tarde, ou pelo menos, acho que já é tarde. Saio de dentro de água e visto-me. Sinto a roupa a colar-se ao corpo. Odeio a sensação, mas não há hipótese. Calço-me e começo a andar por onde vim. Movo-me com cuidado, agora com o corpo molhado é ainda mais difícil não cair. 
Os meus músculos estão rijos. Estou cansada, tão cansada. As rochas estão-me a falhar por debaixo dos pés. Desloco-me para uma das paredes e tento apoiar-me nela. Mal pouso a mão, sinto o algo por debaixo da palma. Com o susto, tiro-a de rompante, o que me faz perder o equilíbrio.
- Ahhhh.
Tento agarrar-me outra vez à parede, mas a mão só raspa nela, fazendo-me gritar de dor. Não consigo recuperar o equilíbrio. Caio e sinto as rochas por debaixo de mim. Dói-me a cabeça, os joelhos. Estou de calções porra. Sinto a garganta seca. Tento-me mexer, mas não consigo. Estou tão tonta, fraca. Ninguém sabe que eu estou aqui. Absolutamente ninguém. E ninguém no seu juízo perfeito se lembraria de me vir procurar aqui. Vou morrer. Só pode. E com o pânico dentro de mim, desmaio.

sábado, 14 de julho de 2012

O Mar é fiel 3*

É verão. Odeio. Chegou o calor. Chegou a vontade das pessoas de virem para a praia. Sujarem. Poluírem o meu pequeno mundo. O meu ponto de abrigo. O meu porto seguro. Vai ser inundado por pessoas que não o entendem. Que fogem das algas. Dos animais que o habitam. Até dos peixes, meu Deus, aqueles peixinhos, tão pequenos, tão indefesos, elas, as pessoas, têm medo. Por isto, recuso-me a ir à praia durante a tarde, quando é verão. Fui uma vez. Uma vez, e foi o suficiente. Pessoas a rir, a gritar, a falar alto. Não tenho nada contra. Simplesmente, aprecio o som das ondas ou do mar calmo, conforme, e com aquele barulho todo, não consigo. E eu não suporto ir à praia e não conseguir escutá-lo. No inverno, são raras as pessoas que vão. São mais surfistas. Mas estes não falam. Entendem o mar como eu. Com o coração.
Por isto, só vou à praia de noite, quando o verão reina. É lá que estou agora. Com o meu casaco apertado até acima, pois até no verão, ao pé do mar, as noites são frias. Vou andando lentamente até chegar à beira mar. Hoje não vou entrar. Hoje não. Fico só a ver. A ouvir. A sentir. É lindo. Maravilhoso. Cada onda a bater nos rochedos, ali ao lado. A chegarem aos meus pés e a voltar para trás. Repito, lindo. Maravilhoso. Enfio as mãos mais fundo nos bolsos e fecho os olhos. Concentro-me naquela melodia de notas, de sons. Cada um entra dentro de mim, trazendo paz. Trazendo tranquilidade. Segurança. A areia desaparece debaixo dos meus pés. O bar lá ao fundo, desvanece. A mente aclara-se. Nada interessa. Nada importa. Só aquele som. Aquela música. Estou totalmente focada, descontraída...
- Dá-me o meu sapato!
Nem me dou ao trabalho de me virar. Abro os olhos, resignada à ideia de que nunca conseguirei encontrar paz. Pelo menos, não pelo tempo que preciso. Os miúdos correm pela praia. Começa um conjunto de barulhos: risos, gritos, corpos contra a areia. Suspiro. 
Começo a caminhar à beira mar, de cabeça baixa. Devia ter nascido no mar. Ter guelras. Barbatanas. Ser feliz. Olho em frente quando o chão por debaixo dos meus ténis se transforma em rocha. Um rochedo. Vários rochedos. Olho para a minha frente. São tantas rochas, umas empilhadas nas outras. Formam pirâmides, montes. 
Sinto uma enorme vontade de subir aquilo. De o escalar. E faço-o. Com cuidado, para não escorregar. De tudo o que preciso, uma perna partida ou um tornozelo torcido não se encontra na lista. Não sabia muito bem para onde estou a ir. Ou sequer, porquê. Sento-me, já no topo. Estou aqui a fazer o quê mesmo? Depois reparo. Não há gritos. Não há risos. Não há barulho. Há o murmúrio das ondas. Isso sim. 
Antes de poder, sequer, agradecer por ter vindo parar aqui, uma onda rebenta mesmo no penedo onde me encontro. Fico encharcada até aos ossos. Mas não me importo. Olho em volta, com os braços contra o peito. Está uma mancha no escuro. Não consigo entender o que é. Semicerro os olhos para tentar descobrir o que é. Como não consigo, vou até lá. Outra vez, lá aonde? Salto de rocha em rocha e escorrego, até, em algumas, recuperando, porém, o equilíbrio.
Chego lá e vejo que é uma entrada. Espreito lá para dentro. É uma gruta. Com uma luz bem no meio. O que será que há lá dentro? Morcegos? Os morcegos gostam de grutas.
Entro. Não reparo que aquele rochedo servia como degrau, por isso caio para a frente quando sinto que o chão não está onde era suposto estar. O meu corpo embate contra algo molhado e áspero. Água e areia. Deixo-me estar assim. Que terá esta gruta? Aranhas? Lagartos? Caranguejos, provavelmente? 
Não sei. Não quero saber. Estava ali. Só se ouvia o som do mar. Nada de gritos ou risos ou corpos a embater no chão. Só eu. Só o mar. Só a noite.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Tenho 8 anos e (...)

O pai e a mãe discutiram ontem. Foi tão feio. Gritaram muito. Eu estava na minha cama, com os lençóis a tapar-me toda. Desejava de todo o coração que o Jaime estivesse ali. Naquele momento. Mas não estava, por isso tentei pensar nas nossas brincadeiras. Mas não consegui. O pai e a mãe nunca tinham discutido desta forma…
- Olívia? Olívia, estás a ouvir-me?
- Han…?                                        
- Parece que não estás aqui.
Estamos sentados por debaixo de uma árvore. A árvore em que nos conhecemos no primeiro ano. Já íamos no terceiro.
- Estou a pensar no que aconteceu ontem...
- Não estejas. Eles são adultos. Hoje já estão bem.
Confio muito em Jaime. Mas mesmo assim não acredito e começo a chorar baixinho. Ao notar, aproxima-se de mim e dá-me a mão.
- Oh Olívia, prometeste que se eu ficasse contigo não choravas mais…
Dou-lhe uma pequena palmada no ombro.
- Que parvo, és mesmo rapaz.
Sei que é verdade. Sorrio.
- Vês? Já estás melhor. Anda vá, está a tocar.
Vamos. Mas não me sinto melhor. Só penso na minha mãe a chorar. No meu pai a chorar… Ele nunca chora.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Tenho 7 anos e (...)

Dá o toque de saída. Arrumo as minhas coisas nas mala, ponho-a às costas e saio da escola com o Jaime. A mamã está a falar com a mamã do Jaime. Isso quer dizer que ainda vamos ter algum tempo para brincar. Dizemos-lhe olá, pousamos a mala num dos bancos do jardim e vamos para a nossa árvore. O Jaime começa a subir. Já vai muito lá em cima.
- És mesmo rapariga, ainda só vais aí.
Deito-lhe a língua de fora e tento subir mais depressa. Já o estou quase a apanhar, mesmo quase, mas escorrega-me o pé e perco o equilíbrio.
- Ahhh.
Sinto uma mão a agarrar-me, a segurar-me.
- Ai se não fosse eu. Olho para cima e vejo o meu amigo, empoleirado nos ramos. Sorrio, e subo com ele até lá a cima. Quando chegamos ao ramo mais forte da árvore, sentamo-nos, eu encostada à arvore, ele mais ou menos a meio.
- Queres ver uma coisa?
- O quê? – pergunto.
Ele põe-se sentado, com as pernas pendentes para o mesmo lado e deixa-se deslizar, ficando pendurado na árvore.
- Pareces um macaco – e desato a rir. Ele ri-se comigo, ri-mos os dois, durante imenso tempo.
- Meninos, vamos embora. – é a minha mamã.
Descemos da árvore e despedimo-nos. Não com abraços ou com beijos, daqueles que ficamos todos babados. Não, despedimo-nos com aquele toque, que é nosso, só nosso e de mais ninguém.
- Até amanhã Olívia.
- Até amanhã Jaime.

domingo, 1 de julho de 2012

Tenho 6 anos e (...)

- Vou-te apanhar – grita-me ele.
Vamos ver. Estou na escola, no intervalo. Como pouco cresci, tenho vestido outra vez a roupa do meu primeiro dia de aulas, no 1º ano – uma saia cor de rosa com um top branco. Corro para trás de uma árvore e sento-me no chão. Ainda bem que a mamã decidiu não me mudar de ano, é o que penso, pois teria sido mau, muito mau.
- Olívia, onde estás tu?
Rio-me baixinho, ao mesmo tempo que rastejo para debaixo de uns arbustos. Ao fazê-lo, arranho um joelho numa pedra. Está a deitar sangue, muito sangue. Páro a meio do caminho, sentada no chão. Começo a chorar. Dói-me muito. Chamo pelo meu amigo:
- Jaime, JAIME.
Ele corre para me ajudar.
- Oh Olívia..
Ajuda a levantar-me e juntos vamos até à senhor porteiro. O meu joelho arde muito. O senhor Hortênsio é muito simpático. Senta-me numa mesinha e limpa a minha ferida com água. Depois, põe um produto – não percebi para que servia – mas que alivia a dor. Mete-me um penso, com ursinhos. O Jaime está lá, a dar-me a mão, a acalmar-me. É um bom amigo. Quando o senhor acaba, ele ajuda-me a voltar para o recreio. Dá o toque para voltarmos para a sala. E nós vamos. Juntos.

Tenho 5 anos e (...)

Hoje é o meu primeiro dia na escola. Vou para o 1º ano. Todos os meninos e todas as meninas na minha sala são mais velhos que eu 1 ano. A mamã diz que é por eu fazer anos em Novembro. Dessa forma, já posso ir para a turma dos crescidos. Não percebo bem o porquê, mas também não pergunto. Os mais velhos são muito complicados.
A minha turma é simpática. Durante a aula, são sossegados. Estamos a aprender a ler. Não entendo isto. Eu já sei ler. Já há muito que tinha aprendido. Ao aperceber-se disto, a professora vai ligar à mamã, no intervalo. Sei que é feio escutar pelas portas, o papá já mo ensinou, mas é mais forte do que eu. Pelo que percebo, quer avançar-me um ano, porque, como ela diz, ‘a Olivia não faz nada nesta turma’. Não quero mudar de turma. Já me sinto assustada nesta. Se for para uma de ainda mais velhos, iria ficar aterrorizada. Ao notar isto, começo a chorar baixinho, para a professora não me ouvir. Já não a ouço, com os meus soluços, por isso vou embora. Quando chego ao recreio, vejo muitos meninos a brincar. Alguns são muito grandes. Tenho medo. Corro para um canto, sozinha, a chorar. Porquê é que os papás me trouxeram para aqui? Eu não gosto disto. Oiço um barulho. Olho para cima. É um menino, da minha turma:
- Porquê estás a chorar?
- Porque tenho medo.
Ele parece não entender. Inclina um pouco a cabeça, olha-me e depois senta-se ao meu lado e dá-me a sua mão:
- Se eu ficar contigo, prometes que não choras?