quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O mar é fiel 22*

Um arrepio percorre-me a espinha e as pálpebras teimam em ficar fechadas. Sinto um odor a chegar-me às narinas e reconheço o que é: chá. Não me lembro da última vez que bebi chá. Para ser honesta, não me lembro de nada. Sinto o corpo a arder, mas ao mesmo tempo tenho frio. Tento mexer-me, mas uma mão impede-me. 
- Shh, tem calma.
A princípio, não reconheço a voz. Esta, porém, desperta algo em mim, algo que não consigo entender o que é. Tenho um ataque de tosse, que me faz sentar e perder a respiração. Sinto alguém a ajudar-me quando perco as forças para me manter sentada. Quando consigo acalmar, estou a arfar. Tento falar, mas a voz falha-me e as palavras não conseguem formar frases.
- Sede.. - respiro fundo - água.. por favor.
A cabeça pesa-me e lateja e sinto-me cada vez mais a arder. Afasto os lençóis e cobertores e sinto a ar frio na pele. 
- Está aqui. Calma, para não te engasgares - alguém põe-me um copo nas mãos, e ajuda-me a segurá-lo. Levo-os aos lábios e bebo tudo de uma só vez. Sabe bem. É como se não bebesse água à anos e o meu corpo pede mais. 
- Queres mais? - pergunta a voz que, agora, consigo reconhecer.
- Sim..
- Já venho então.
Encosto-me melhor às almofadas, de forma a ficar sentada. Tento reconhecer, a pouco e pouco, o sítio onde estou. Lentamente, as memórias antigas ajudam-me e consigo entender o espaço à minha volta. Consigo reconhecer a cama, a televisão, os móveis, as paredes, os quartos. Estás em casa dele. O que se passou? Não consigo lembrar-me de nada desde o momento em que fiquei à porta dele. Nem sei quanto tempo lá fiquei. 
Vejo-o a entrar na divisão, com o rosto cansado, mas satisfeito. Frederico. O meu coração dá um pulo e tenho noção do tempo que fazia desde a última vez que o vi. Tinham passado tantos dias que doía, fisicamente.
- Está aqui. 
- Obrigada - bebo tudo rapidamente, mas desta vez já não preciso de ajuda. Dou-lhe o copo e ele mete-o na mesinha de cabeceira. Olho para ele e ele olha para mim, mas não diz nada. Tento organizar o pensamento, e as perguntas que se atropelam por ser as primeiras a sair. Algo me diz que não estou pronta para isto, mas já não aguento mais.
- Estás com calor? - para minha surpresa, ele é o primeiro a falar; chega-se a mim e mete-me a mão na testa  e depois os lábios - estás menos quente, muito menos. 
Realmente, tenho calor. A voz insiste em não vir, pelo que aceno afirmativamente, apenas. 
- Vou-te buscar algo mais fresco - e vejo-o dirigir-se a uma mala no chão da sala/quarto. Vou tirando as camisolas, quatro ao todo. Tinha estado assim tanto frio? Tirei as calças do pijama e o ar frio arrepiou-me a pele. Mais perguntas formam-se na minha cabeça, para as quais não tenho resposta. Ele volta com roupas minhas e mais perguntar vêm. Tenho uma tontura quando começo a vestir as leggins e ele segura-me quando me desequilibro. Visto o top, ponho o casaco e ele fecha-mo. Depois dá um jeito rápido na cama e ajuda-me a sentar-me, desta vez por cima dos lençóis e cobertores. Enrolo me numa manta que está ali e ele senta-se na cadeira. Desta vez, sou eu a primeira a falar.
- O que se passou?
- Ficaste doente. Eu cheguei a casa, tinha saído para ir fazer um trabalho, e tu estavas ali enrolada, completamente gelada. Trouxe-te para dentro, não sabia o que fazer por isso liguei para tua casa com esperança que estivesse lá a Dona Matilde. Felizmente, estava. Contei-lhe o que se tinha passado e ela veio cá ter, com roupas tuas. Ela disse-me o que fazer e tem passado por cá todos os dias.
- Já veio hoje?
- Já - isto desaponta-em; gostava de poder falar com ela - já é de noite, Lua.
Instala-se um silêncio de novo e passado um pouco, oiço-lhe a voz magoada:
- O que te passou pela cabeça? Podias ter morrido.
Baixo a cabeço e odeio-me por isto: por ser fraca ao ponto de não o conseguir enfrentar.
- Eu estava à tua espera. Queria falar contigo.. - as lágrimas impedem-me de continuar e dizer tudo o que sinto - onde é que estavas?
Olha para ele. Faço-o. Olho-o nos olhos e desta vez é ele quem não me encara.
- Já te disse, saí para um trabalho. Levou alguns dias e era longe.
- Eu mandei-te mensagens. Liguei-te inúmeras vezes. Podias ter-me dito que ias para fora.
- Eu não queria..
- Falar comigo? - ele olha para mim e desta vez, nenhum de nós desvia o olhar; também ele já tem lágrimas nos olhos - não faz mal, eu mereci. Eu magoei-te e isso tu não merecias.
Por momentos parece que ele vai falar, mas algo impede-o. 
- Quanto tempo estive doente? 
- Quase um mês - o coração cai-me aos pés; um mês. Tanto tempo. Ele tinha razão, fora uma loucura. 
Reúno toda a coragem que me resta e falo.
- Eu não queria ter feito o que fiz. Eu não queria ter-te mentido, não queria evitar-te, não queria ter-me tornado numa pessoa diferente. A verdade é que eu nem notei no que fiz. Não reparei que te estava a afastar, que te estava a perder. Simplesmente.. 
- Simplesmente fizeste o que querias? - o tom dele magoa-me mais ainda; não é um tom de censura, mas sim de mágoa, de desapontamento. Um tom que eu odiava.
- Por favor, dá-me mais uma hipótese. Por favor. Eu mudo de novo. Eu volto a ser a rapariga que conheceste, eu volto a ser quem era. Por favor, Frederico, eu amo-te. Eu não te quero magoar, eu não quero que estejamos assim, eu quero que estejas bem, que nós estejamos bem. Desculpa. Desculpa, desculpa, desculpa, desculpa.
Ele levanta-se e senta-se ao meu lado, abraçando-me. Como eu tinha saudades disto. Como tinha saudades de estar com ele, de o ter assim, perto de mim, comigo, só nós. Deus, eu amo-o tanto.
- Vamos tentar outra vez, Lua. Eu amo-te e não quero que isto acabe assim. Vai correr bem, desta vez. Todas as relações vão abaixo de vez em quando, desta foi a nossa vez. Acontece. Promete-me que vais tentar, tal como eu prometo que vou tentar. 
- Prometo, eu prometo, que vou dar o meu melhor e por todo o que tenho para que nós resultemos. Eu prometo. 
Tiraram-me 5000 quilos dos ombros. Quase que tenho vontade de cantar, de dançar, de gritar. Eu não o perdi, eu não o perdi. Sinto-me tão feliz. 
Ele beija-me e eu beijo-o de volta. Eu disse-te.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O mar é fiel 21*

Já tinha passado quase duas semanas desde a última vez que tinha falado com o Frederico. Já tinha perdido a conta às mensagens que lhe tinha enviado e às chamadas que ele me tinha rejeitado. Vai ter com ele. Mas eu não consigo. Sei que ele está magoado comigo, e com razão. Eu errei e muito. Se for a casa dele, muito provavelmente vou ficar à porta, pois ele não me quererá ver. Que tens a perder? Ele já não fala contigo, não há mais nada que possa fazer. Mas eu tenho medo. Medo que ele me rejeite de novo, que me feche a porta na cara ou pior que isso, que nem a abra. Não quero isso. Quero falar com ele, dizer-lhe que vou mudar, que vou voltar a ser a rapariga que ele conheceu naquele verão. Quero dizer-lhe que o amo e que por ele eu sei que consigo. Preciso de lhe dizer. 
Estou prestes a abrir um buraco no chão. Vou ou não vou? Vou ou não vou? Vou ou não vou? Ando de um lado para o outro no quarto, perdida em pensamentos e questões. Vai, é melhor ires, saber bem que sim. Se for, ele pode não querer falar comigo, pode-me rejeitar, mas ao menos fica a saber que eu me preocupo e que tentei. Se não for, ele vai ficar a pensar que não me preocupo com a nossa relação, que para mim isso não é importante. O que não é verdade. Decido-me a ir. Visto-me à pressa, pego na mala e saio de casa. As nuvens tapam o sol e ameaçam chuva. Acelero o passo quando começo a sentir pingos na cara e no cabelo. Quando chego a casa dele, há estou toda ensopada, com a roupa colada ao corpo e cheia de arrepios. Ao bater à porta, noto que as mãos me treme e algo que me diz que não é do frio. Porque é que eu vim? Ele não consegue olhar para mim, nem sequer atender uma chamada ou responder-me às mensagens. Jamais aceitaria falar comigo. Ele tinha deixado bem claro que tinha acabado. Bato mais uma vez. Será que ele está em casa? Pode se ter ido embora.. Desvio esta ideia da cabeça. Ele não podia ter-se ido embora assim, ele não o faria. Bato mais uma vez. E outra. E outra. As lágrimas já me escorrem pela cara abaixo e acabo por deixar cair a mala no chão. Ele deixou bem claro que tinha acabado e eu fui burra ao achar que o poderia ter de volta. Tem calma, pensa. Não consigo. Não consigo pensar, não consigo raciocinar, simplesmente não dá. Bato outra vez na porta, e quando a mão começa a deitar sangue por raspar na madeira, acabo por desistir. As pernas tremem-me tanto, que acabo por cair ao tentar sair dali. Não podes desistir! E faço o quê? Não sei, pensa! Ele não podia ter ido embora. Por mais magoado que estivesse, ele não o faria, não sem me dizer alguma coisa. Ele tem que voltar, eu sei que sim. Mostra-lhe que te importas. Óbvio que me importo. Ele é tudo o que me resta, corrói-me por dentro não poder estar com ele, não suporto a ideia de o ver assim, de nos ver assim. Eu preciso dele, já não tenho mais nada. Ele tem de voltar. Mais tarde ou mais cedo. E quando voltar, eu vou estar ali. Ali mesmo, à espera dele.
Limpo as lágrimas e encosto-me à parede, puxando a mala para ao pé de mim. Quando ele voltar, nós vamos voltar. Não importa o tempo que demore, eu estarei ali à espera dele, ali para lhe dizer tudo o que sinto e penso. Se depois disso, ele quiser acabar, então eu respeito. Podia ter acabado para ele, mas não para mim. 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O mar é fiel 20*

- Lua, podes abrir a porta?
Arrasto-me pelas escadas abaixo e deixo-o entrar, com a luz a encadear-me a visão. As minhas pernas falham e tenho de me agarrar ao Frederico para não cair.
- O que raio se passa contigo?
- A festa foi demais.. - murmuro enquanto me encosto a ele.
- Lua, precisamos de falar.
Por muito pouco funcional que a minha cabeça esteja neste momento, apercebo-me no tom de voz dele e tento manter-me focada.
- O que se passa?
- O que se passa? Já viste bem o teu jardim?
Olho para ele e vejo-lhe o ar meio zangado meio preocupado pelo que me dirijo lá fora, com a mão a proteger os olhos. Levo algum tempo até me adaptar à luz, mas quando consigo, entendo o que ele quer dizer. O relvado é uma mistura de garrafas de bebida e cigarros por todo o lado. A noite de ontem tinha sido demais.
- Agora deste para fumar foi?
- O quê? Não - é mentira, tu sabes.
Ele nem responde. Vira-me costas, entra em casa e sobe pelas escadas a cima. Faço um esforço para o acompanhar e quando chego ao meu quarto, ele está a revirar-me as gavetas, as malas, tudo. 
- O que é que pensas que estás a fazer? Pára com isso!
- Se me vais mentir, então tenho de arranjar provas.
- Pára com isso Frederico, não tens direito nenhum de mexer nas minhas coisas. 
Ele ignora-me e eu acabo por perder as forças que ainda tenho. Encosto-me à parede, a tremer por todos os lado. Ele vai descobrir. 
Subitamente, ele pára. Um arrepio percorre-me a espinha e eu sei o que vai acontecer a seguir. O estômago revolve-se. 
- Nunca pensei que tivesses de me mentir. 
- Eu..
Ele vira-se de repente, tão depressa que me assusta.
- Tu o quê? Tu escondeste-me isto. Tu mentiste-me quando te fiz uma pergunta bem direta. Tu mudaste, eu já não te conheço, já não vejo a pessoa que conhecia há um ano e meio. Já não és a mesma.
- Sou, sou sim, deixa-me explicar, por favor..
- Explicar o quê? Tu fumas e nunca me contaste. Pensas que sou estúpido? Sempre a comeres pastilhas, a tentares disfarçar com a desculpa 'estava ao pé de amigos'. Eu não sou burro. Mas tu fizeste de mim um. Desde quando é que isto dura?
- Desde a festa dos caloiros.. - a minha voz mal se ouve; tenho um nó tão grande na garganta e as lágrimas estão cada vez mais próximas.
- Isso foi à quase 3 meses. Tu andas-me a mentir à três meses.
- Tu é que insistis-te comigo para ir! 'Precisas de fazer amizades' foi o que tu disseste!
- Porque pensei que tu fosses crescidinha o suficiente para não te meteres nisto. Tu sais todas as noites, e de manhã estás sempre de ressaca. Sempre. 
- Estás a fazer uma tempestade num copo de água, qual é o mal do que eu tenho andando a fazer?
- Tu não entendes pois não? - oiço-lhe a voz magoada, o que me magoa a mim também - tu mentiste-me. Mentiste-me, escondeste-me coisas. Qual foi a última vez que estivemos juntos em condições? Quando é que foi a última vez que fizeste alguma esforço para estar comigo?
Dou voltas e voltas à cabeça mas é verdade que não temos um momento só nosso quase desde o verão. Era verdade, e eu sei-lo. Eu não tinha feito qualquer esforço para estar com ele, tinha-o evitado pois não queria que ele notasse nas minhas mudanças. Eu não queria.
- Deixa estar. Não vale a pena, pois não? Quer dizer, tu agora és uma universitária, tens festas, álcool, tabaco. Não precisas de mim.
- Não foi isso que eu..
- Não precisas, entendes? Não precisas de dizê-lo. Os teus atos falam por ti. 
Neste momento já ele tem lágrimas grossas a escorrerem pela cara abaixo, tal como eu.
- Frederico..
- Não vale a pena, Eu já não te conheço. Eu já não sei quem tu és. Simplesmente tornaste-te num estranha. Num desconhecida. Assim não. Não dá. Desculpa, mas não consigo. Acabou.
Ele sai do quarto e oiço a descer as escadas.
Vai atrás dele. 
Mas eu não consigo. Não consigo andar, não consigo mexer nenhum músculo, nem sequer organizar os pensamentos. Sinto-me feita de chumbo, e quando realmente entendo o que acabou de acontecer, sinto uma dor lancinante no peito, que me faz quebrar em lágrimas.