domingo, 31 de janeiro de 2016

Saiu de casa, desceu a rua e esperou. Com um cigarro entre os lábios, ficou a ver as pessoas passarem. As crianças corriam de um lado para o outro, as mães carregavam sacos de compras. Passeavam-se cães, namorava-se, e a conversa pairava no ar como se todos os sons de algum modo se completassem.
 Ela esperava a seu lado. Calada, quase de modo imperceptível.
O autocarro chegou e eles entraram. Sentaram-se junto à janela, e limitaram-se a observar o exterior. A multidão movimentava-se passeio fora, os carros guinavam, os condutores gritavam. Mais um fim de dia. Tal como todos os outros. O desejo comum de se regressar a casa, ao sossego das quatro paredes, para o tal merecido e ansiado descanso. O veiculo seguiu estrada fora, subindo a avenida, virando para um lado e depois para o outro, parando para carregar e descarregar, no típico pára arranca da hora de ponta. Passado um longo bocado, chegaram ao destino pretendido. Um lugar tão igual ao lugar de onde partiram, com as suas pessoas a subirem e descerem a rua e os seus carros a buzinar e os seus condutores a protestar.
Com o passo de quem não tem praça, começaram a andar. Ela seguia agarrada a ele, num silêncio que se prolongava desde o início. Qual a necessidade de se falar, quando não havia nada que valia o esforço de ser dito?
Chegaram a uma casa tão normal como as restantes e entraram. Estava vazia, tão vazia que dir-se-ia que estava inabitada. O que não seria inteiramente mentira, nem tão pouco inteiramente verdade.
Preparam qualquer coisa para comer, e sentaram-se numa manta estendida no chão, uma vez que o sofá há muito que já tinha também ele deixado a habitação. Quando terminaram, aninharam-se e adormeceram.
Foi só no dia seguinte que os primeiros raios de luz o acordou. Ela já lá não estava. Levantou-se, comeu e saiu, percorrendo o mesmo trajecto do dia anterior, desta vez só e sentido contrário.
Chegou a casa.
- Onde passaste a noite? - ao que parece, a mãe tinha passado a sua à espera que ele chegasse.
- Por aí - respondeu-lhe.
A mãe suspirou.
- Já te disse que isto não pode continuar assim.
- Está bem.
Despiu-se, tomou duche, e foi à cozinha para um segundo pequeno almoço.
- Estou a falar a sério - voltou novamente a mãe - não podes continuar a passar a noite em qualquer lado. E se te acontece alguma coisa? Não pode ser, nem me avisas, não nada.
- Prometo que da próxima te aviso.
- Não vai haver próxima vez. Não. Vai.
- Está bem.
Resignado, pegou na mochila e saiu para as aulas. Encontrou-a cá fora à sua espera.
- Deu-te um puxão de orelhas? - perguntou, quase como se o facto a divertisse. Até porque era bem capaz de a divertir.
Ele não lhe respondeu, limitando-se a abraçá-la.
Caminharam em direcção ao liceu. Manhã de aulas, almoço, tarde de aulas. Mais um dia, tão igual aos outros, numa monotonia sem fim.
Depois da escola, decidiram ir passear. Vaguearam por aí, namoraram, riram. Lancharam num café tão à pinha que não era possível respirar sem incomodar o do lado.
- Aposto que aquela disse ao marido que ia lanchar com uma amiga - disse ela.
- Tanto quanto aquele disse à mulher que tinha trabalho até tarde - disse ele.
Quase noite. Levou-a a casa e regressou à dele.
- Vês, mãe? Já estou em casa - disse, mal passou a soleira da porta.
- Se ao menos fosse assim todos os dias - suspirou ela.
Foi para o quarto e estudou até à hora de jantar. Jantou, e depois ligou-lhe. Passavam mais tempo calados do que a falar mas a simples noção da sua presença acalmava-o. E isso, somente isso, era o suficiente.
*
Passou-se um mês, dois meses, cinco meses. A rotina mantinha-se. Uma rotina quase boa, quase sofrível.
- Falei com a tua directora de turma hoje.
- Sim, sobre?
- Ti. Ela disse que não te dás com nenhum dos teus colegas, que passas as aulas sozinho. Se assim o é, com quem é que passas as tardes todas? E todas as noites que passas na rua? Estás com quem?
- Com amigos.
- Que amigos? - insistiu ela.
Apesar de saber que não poderia esconder tudo dela, aquilo chateou-o mais do que o que esperaria.
- Amigos, já disse.
A resposta saiu-lhe seca, áspera.
- Andas metido na droga?
- Não sejas parva.
- E tu não sejas infantil. Tens assim tanta necessidade de me mentir?
Ele calou-se e tal como acontece, nada mais disse, por muito que ela puxasse por ele. Quando finalmente desistiu, ele levantou-se e saiu. Foi a pé até casa dela, ligou-lhe e pediu que ela descesse. Enquanto esperava, acendeu um cigarro.
- O que se passa? - perguntou ela, quando chegou cá abaixo.
- A minha mãe, é o que se passa - murmurou ele, por entre bafos.
Ficaram ali muito tempo, abraçados, com ela a sussurrar pouco mais do que palavras como "já passou" ou "um dia ela percebe".
- O que é que estás a fazer? - o grito sobressaltou de tal modo que deixou cair o cigarro.
- Estás aqui a fazer o quê? - a visão da mãe, pálida, nervosa, quase aterrorizada à sua frente assustou-o ainda mais do que o grito.
- O que é que estás a fazer? Com quem é que estás a falar? E porque é que estás aqui?
Ele manteve-se calado.
- Responde-me. Agora.
Ela tinha desaparecido. Olhou em volta à sua procura, mas não a via em lado nenhum.
- Assustaste-a - acusou-o ele.
- Assustei quem? - a voz da mãe realçava o medo que a trespassava.
- Quem é que havia de ser? Quem é que estava aqui comigo?
- Não estava aqu...
- Estava sim! - gritou ele, e pôs-se a andar às voltas, a chamar por ela. Mas ela não estava em sítio algum.
A mãe tinha-se encostado à parede, demasiado entorpecida para falar, para agir, para sequer raciocinar. Não é possível.
Passado longos minutos, ele desistiu e caiu sentado no passeio, agarrado à cabeça para a impedir de explodir. O silêncio que os rodeava não era quebrado nem pelo som dos pássaros ou do vento. Nada.
- Filho - começou ela - não estava aqui ninguém.
- Estava - insistiu ele - ela estava aqui.
A mãe abanou a cabeça.
- Não, não estava. Eu vi-te, desde que saíste de casa. Não estiveste com ninguém.
- Estive com ela.
- Não estiveste. Ouve...
- Estive - disse ele, num grito que se propagou rua fora, como se isso o torná-se mais verdadeiro - estive e por saber que não acreditarias é que não te contei. Tu não percebes, tu nunca percebes.
- Por favor, ouve o que estás a dizer. Ela mor...
- Não. - desta vez, foi ele quem abanou a cabeça - Não, tu não entendes, ela não morreu.
- Sabes que si..
- Não. - interrompeu-a outra vez.
Ela não sabia o que dizer, o que fazer, como agir. Limitou-se a vê-lo caminhar em círculos, uma, duas, três vezes, até desatar a correr rua fora. Chamou por ele, mas foi em vão. Ele corria e ela corria atrás dele. Ele era, irremediavelmente mais rápido do que ela, e começou a afastar-se, a afastar-se, até não ser mais do que um ponto no espaço. Dizia a si mesmo que se corresse suficientemente rápido a apanhava, a via, e aí, aí tudo ficaria bem, a dor pararia, o mundo acalmava e tudo voltaria a fazer sentido. Porém, por mais que corresse, ela não aparecia. E o mundo deixou de ser o mundo. Evaporou-se à sua volta, as casas, o passeio, o chão. Era só correr. Correr. Correr. E correu. E no fim, o nada.

sábado, 30 de janeiro de 2016

    Incapacidade. Poderei dizê-lo? Poderei exprimi-lo? Penso que sim, no entanto lembro-me que não. Porque sei que quando o exprimir, torna-se real. E quando se tornar real, torna-se impossível. Fará sentido? Talvez não. Tal como tudo o resto. Não tem mal. Não foi feito para ter sentido, não foi feito para se perceber. Gostava de dizer que não foi feito para se sentir, mas já aprendi, há muito, que foi. Que não sentir é, também isso, impossível.
    Nada mais somos se não rabiscos. Rascunhos incompletos que vagueiam em busca da frase final. Seres deambulantes, por este mundo fora. Não queremos ser só isto, mas é tudo o que somos. Não queremos ficar por aqui, mas é por aqui que ficamos. Uma série infindável de desejos, todos eles quase tão incompletos quanto nós. Mas nem por isso nos resignamos. Nem por isso nos conformamos. Porque conformarmo-nos seria a derrota e essa não a queremos nós por cá. E, portanto, cada dia, cada semana, cada ano, é uma procura sem fim por algo mais, algo mais, algo mais. Até não restar nada sem ser a simples aceitação daquilo que tão simplesmente somos. Daquilo que tão simplesmente nos constitui. A aceitação. De tudo. De tudo o que renegávamos e rejeitávamos. De tudo o que nos repugnava e magoava. De tudo o que nos deixava e partia. De tudo. Não nos traz paz, conforto, sossego. Não nos deixa dormir melhor, não nos deixa viver melhor. Não nos deixa, tão simples assim. Permanece connosco, até mesmo quando desejamos esquecê-la e voltar ao zero. A quando não nos resignávamos. Esses tempos. Bons tempos.

sábado, 16 de janeiro de 2016

    Não sei quantas vezes me detenho a pensar nisto. Quanta vez procuro um sentido, por mais pequeno que seja, no meio daquilo que é um emaranhado de momentos. Não sei. Tento desesperadamente agarrar-me ao que um dia foi o presente, ao que um dia foi real. Um dia. Tão longe. Se me perguntassem, diria que nem o vivi desta vez, mas sim noutra qualquer perdida no tempo. No espaço. Irrealidade, irracionalidade, incompreensão. Palavras que descrevem tudo, tão resumida mas completamente. Quando foi que tudo escapou sem sequer dar-mos por isso? Quando foi que tudo deixou de ter senso? Significado? Já nada me diz nada. Quando foi a última vez que disse? Queria, por tudo, lembrar-me. Queria, por tudo, saber. Queria, queria, porém, não consigo. Porque quanto mais queremos saber, menos sabemos. E quando mais nos questionamos, mais fica por responder. Não sei. Mas queria saber.