sábado, 23 de agosto de 2014

5*

Ele não acreditava em milagres. Para ele, tudo isso era algo à qual as pessoas se agarravam quando não conseguiam encontrar uma explicação para o que acontecia. Ele, porém, sabia bem os motivos pelo qual as coisas aconteciam. 
As últimas semanas tinham sido estranhamente boas e tinham passado mais rápido do que ele se apercebera. Tudo lhe parecera mais fácil. Mais leve. As aulas tornaram-se mais fáceis de aguentar e se alguém o olhava de lado ou mandava algum comentário, ele parecia nem notar. Levantar-se de manhã já não custava como dantes e havia quase uma vontade de sair de casa e viver o dia-a-dia. Apesar de nem tudo estar como ele quereria, Rui sentia que aquela mudança, apesar de aterradora a inicio, lhe tinha feito melhor do que aquilo que o seu lado independente e desconfiado gostava de admitir. 
Quase todos os dias estava com ela. No princípio, apenas depois das aulas mas depressa começaram a estar juntos durante os intervalos, horas de almoço ou até mesmo quando algum professor faltava. Estudavam juntos, faziam par em quase tudo o que era trabalho de grupo. Os amigos dela, contudo, pareciam não partilhar do entusiasmo deles sobre a relação que se estava a originar. Ao contrário de Rui, Sara dava-se com quase meia escola e era amiga de toda a gente. Para muitos, vê-la com o rapaz do fundo da sala que não fala com ninguém era não só absurdo como não fazia qualquer tipo de sentido. Se ela concordava com eles, não o mostrava. Pelo contrário.
Apesar de reservado, ele dava por si a contar-lhe coisas que há muito tinha trancado num cantinho da sua mente. Coisas privadas que nem a ele mesmo dava permissão para vasculhar. Ela ouvia. Podia ouvir durante horas, sem nunca o interromper. Quando olhava para ela, Rui apanhava-a a fixá-lo como se estivesse a beber cada palavra que ele dizia. Sempre achara que não tinha muito para dizer. No entanto, mesmo depois de todo o tempo que passavam juntos e tudo o que falavam, ele chegava sempre à conclusão de que ainda havia mais para dizer. Muito mais. 
Com Sara era igual. Ela falava sobre tudo. Por vezes, eram simples coisas como músicas que gostava ou sítios onde tinha ido. Noutras, eram conversas mais profundas às quais ele raramente sabia como reagir. Ela, todavia, sabia sempre como reagir. E quando ele lhe aparecia à frente magoado ou dorido, Sara nunca acreditava nos motivos que ele lhe dava para ter ficado naquele estado. 
Era fim do dia e eles tinham aproveitado o facto de terem tido tarde livre para irem passear. Estavam a andar quando ele parou de repente. 
- O que foi? - perguntou-lhe ela.
- Nada. 
- Nada?
- Sim, nada. Só..
Sara olhou para ele, à espera de resposta. 
- Está um pôr do sol tão lindo, não podíamos ficar simplesmente a vê-lo?
Ela esboçou um sorriso.
- Que lindo, o meu menino tem um lado romântico que eu nem sabia que existia.
- Okay, esquece - disse ele com um suspiro - continuemos então.
E recomeçou a andar. Ela porém abraçou por trás o que o fez soltar um grito de dor e dobrar-se. 
- O que foi? - A voz de Sara soou-lhe alarmada, assustada até.
- Nada - mentiu ele, tentando endireitar-se, mas ela não se deixou ficar. 
- Se não fosse nada não terias gritado Rui.
- Foi só.. Com demasiada força. 
- Porque eu tenho uma força tremenda, realmente. 
Ele não lhe respondeu e novamente recomeçou a andar porém ela levantou-lhe a camisola antes de ele a poder impedir. O que viu deixou-a horrorizada. 
- Rui.. - a voz dela era pouco mais do que um murmúrio.
- Não é nada Sara, a sério. - disse ele voltando-se para ela. 
- Nada? Tens as costas todas negras, como é que podes dizer que é nada?
- Eu cai.
Ela não vai acreditar nisso, disse algo dentro dele. Mas ele não podia contar-lhe a verdade. Não queria. E isso sim, era mais forte do que ele. 
- Não me mintas, sabes bem que não foi isso.
- Foi sim.
- Ai sim? E caíste como?
Pensa, ordenou a si mesmo.
- Das escadas. Tropecei num tapete e...
- Rui.
Ele calou-se. Sentia-se culpado pela forma como lhe estava a mentir mas também sabia que se lhe contasse a verdade as coisas só iriam ser piores. 
- Se não queres contar-me o que aconteceu, não contes. Mas por favor, não me mintas. 
Rui não lhe respondeu. Não sabia o que dizer e mesmo que soubesse duvidava que a sua voz funcionasse como devia ser. Limitou-se a dar um ligeiro aceno e a baixar a cabeça. Sem sequer pensar, Sara abraçou-o com uma delicadeza que ele sabia ter sido medida por ela. Isso apenas fez com que ele se sentisse ainda pior consigo mesmo. Ela, porém, não deu mostras de estar magoada ou chateada. Ainda assim, nada melhorava a culpa que sentia. Já era de noite e portanto apanharam o autocarro e voltaram para casa. Ao despedir-se dela, ele não conseguiu deixar de se perguntar a si mesmo se devia ou não contar-lhe tudo. E se sim, como. 

Sem comentários: